Duas notícias nesta terça-feira nos causaram a definitiva sensação da falência política da cidade. Em primeiro lugar, um “Informe Publicitário”, publicado dentro do jornal O Globo, anunciando as mudanças que se avizinham numa área que abrange não apenas a região do projeto Porto Maravilha, mas avança para parte de São Cristóvão, Cidade Nova e sabe-se lá para onde mais. A segunda foi publicada no jornal O Dia, dando notas sobre um “acordo de investimento” assinado entre a Caixa Econômica Federal e uma empresa estadunidense administradora de fundos imobiliários com vistas a um megaempreendimento bem na esquina da metrópole.
O dito “Informe Publicitário” d’O Globo vem com nome de programa de governo do atual alcaide (aquele pra quem tudo na Cidade é “Maravilha”), mas foi muito bem diagramado nas artes gráficas dos seus principais mecenas globais. Mas o que mais chama a atenção não é só o layout quase governamental e sim o forte conteúdo ideológico, a devastadora demonstração de força dessa articulação política que furta o ar de qualquer cidadão minimamente cônscio da conjuntura atual.
Em primeiro lugar, os editores lançam, despudoradamente, a expressão “Revolução Urbana” para caracterizar o fenômeno que seus patrões estão a detonar por todos os lados. Nós todos que, com todo o sacrifício, ao longo de décadas, alcunhamos a Reforma Urbana, assistimos agora a essa “Revolução” praticamente de mãos atadas e voz embargada. Aos trancos e barrancos, forjamos a cidadania e a urbanidade de movimentos sociais, associações de moradores, entidades profissionais e universidades voltados para o planejamento criterioso e ordenado de espaços públicos e privados, com participação qualificada de todos os segmentos sociais e controle da renda da terra, voltados para a justiça social na cidade. E agora, o governo PT-PMDB nos oferece esse legado.
A instalação de dezenas de torres, com dezenas de metros de altura ao longo das principais avenidas do Centro e da zona portuária do Rio não apenas transformarão a cara da região, mas deverão, também, mudar a forma como nos relacionamos com a cidade e com toda a região metropolitana. Vamos ter que reaprender a se deslocar na cidade. Vamos ter que reaprender a gostar da cidade.
Mais do que a sanha indecente do Capital imobiliário sobre esses tantos projetos, espanta-nos o silêncio de entidades respeitadas e eminentes acerca dos inúmeros impactos de tantas mudanças sobre nossa já saturada malha urbana. Entidades profissionais, centros de pesquisa das universidades, federações de associações de moradores sequer sussurram sobre o que está por vir nos próximos poucos anos.
O tal “acordo de investimento” nos remonta às mais espúrias negociatas da marginália que governou o Brasil entre 1964 e 1985, sob a proteção de veículos blindados, de quepes e fardas medalhadas suntuosas. Trata-se de um negócio fechado entre um banco público que integralizará terras públicas e recursos de todos os trabalhadores do país (através do FGTS) para garantir e viabilizar a construção de três torres de escritórios com 50 andares cada uma, bem em cima de onde hoje se situa a Rodoviária Novo Rio. Os nubentes da negociata do século XXI, com a cara mais deslavada, se reservam o “direito” de não divulgar valores, muito menos responsabilidades. Salve-se quem puder!
A concepção artística do projeto, publicada em diversos jornais nesta terça-feira (13), apresenta as trigêmeas imponentes, dominando por completo uma paisagem já desbotada com o Pão de Açúcar e o Corcovado ao fundo, apequenados, talvez, pela consternação de testemunhar uma modernidade tão avassaladora quanto culturalmente esterilizante chegando para lhes roubar a magia. A imagem retrata fielmente um Rio que já se encaminha tristemente para o canto escuro das memórias mal conservadas e das reminiscências que lhe tornavam única, sem igual. Não é preciso ser expert em Política para perceber que a imagem divulgada tem um conteúdo simbólico poderosíssimo, capaz de condensar exatamente o que está em jogo nesse período histórico – e que a população carioca, anestesiada, não consegue sequer vislumbrar.
Quando denunciamos com tanto vigor o caráter elitista e excludente do Projeto Porto Maravilha, quando conclamamos a todos os cariocas insurgirem-se contra esse verdadeiro ataque à identidade da cidade, era exatamente isso o que tínhamos em mente. A materialização da cidade-mercadoria, que agora se intensifica e se mostra sem escrúpulos às nossas vistas, anuncia um futuro que não só nega o seu passado e o seu presente, mas também nega a própria alma de um povo que construiu sua história a partir da convivência entre os diferentes, da pluralidade de modos de vida no seio da sua malha urbana, da mega-cidade que, ao mesmo tempo, cultuava as relações de vizinhança e de bairro.
São inúmeras as questões sem respostas:
– Onde está o projeto da demolição da Perimetral? Quem serão os responsáveis técnicos? Quando começa e quando termina? Quanto vai custar? Os recursos virão mesmo dos CEPACs ou haverá alguma outra fonte? Quais serão as alternativas de tráfego durante e após a conclusão das obras? Por que essa obra é anunciada aos poucos? Quais são os canais de diálogo da população com o projeto?
– Por que a prefeitura mentiu em 2009, ao anunciar que os CEPACs seriam vendidos aos poucos, para empreendedores privados, aproveitando-se da valorização esperada da terra na região do projeto e, em 2011 organizou um leilão que praticamente só a Caixa Econômica Federal poderia participar? Por que foi tão leviano o prefeito Eduardo Paes e seus secretários ao mentirem dessa forma? Se a Caixa pagou 3,5 bilhões de reais, de onde virão os recursos extras para chegar aos 15 bilhões que serão necessários para concluir toda a operação urbana do Porto do Rio?
– Como ficarão os acessos à Ponte Rio-Niterói e à Avenida Brasil após a conclusão de toda a “Revolução” que agora se apresenta? Todas as parcas e desconexas informações tornadas públicas até agora dão conta de que haverá redução de espaço viário e de oferta de viagens nos principais acessos e linhas de coletivos existentes hoje. Estamos falando da espinha dorsal do sistema de transporte público (malha viária, linhas de ônibus) de toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro! E nada é apresentado para a população? Ninguém tem direito de saber de fato o que está sendo feito da nossa metrópole?
– Desde quando um banco público, utilizando-se de recursos públicos (terreno e FGTS), faz um “acordo” com uma organização privada e sequer se submete ao princípio da transparência, da razoabilidade nos seus atos administrativos? Quem são os responsáveis técnicos e políticos que avalizaram o negócio por parte da Caixa Econômica Federal? Quais serão as garantias para os trabalhadores, caso a crise econômica leve esse projeto megalomaníaco para o ralo nos próximos anos? É prudente e racional uma seqüência de investimentos dessa monta, nesse prazo tão curto, num cenário econômico de tamanha incerteza?
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