“Um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento das manifestações de junho foi a revolta da população contra a Polícia Militar. Foi depois de a PM ter fechado a avenida Paulista e demonstrado toda a sua covardia e brutalidade contra quem estivesse à sua frente que a população brasileira ocupou massivamente as ruas.
Já no ano passado, ficamos sabendo, graças a estudos do Ipea, que 62% da população não confiava na PM, enquanto 63,5% afirmava que tais policiais tratavam pessoas com preconceito. No entanto, governadores como os senhores Sérgio Cabral e Geraldo Alckmin continuavam a se vangloriar das barbáries cometidas por suas polícias, sem ao menos ter a dignidade de se perguntarem porque elas eram tão rejeitadas pelo povo.
Não passou pelas suas cabeças perguntar-se se há espaço para uma polícia militar em sociedades democráticas. Talvez haja uma razão para país democrático algum ter uma polícia militar ocupando as ruas. Nesses países, ela se restringe à segurança de áreas militares. Pois ninguém aceita uma força que procura, entre outras coisas, mediar conflitos internos à sociedade civil através da lógica militar da distinção amigo/inimigo, algo próprio a situações de guerra.
Quem é o inimigo quando estamos falando das tensões presentes nos combates da sociedade civil? Quem é o inimigo quando é questão de desapropriações de famílias miseráveis e jovens que ocupam as ruas para protestar contra a ausência de prioridade social dos governos?
Mas como se não bastasse um certo “problema de concepção” na estrutura de segurança interna brasileira, ainda somos obrigados a aceitar algo mais intolerável. No Brasil, não é evidente conseguir distinguir polícia e bandido, dado o comportamento criminoso de vários “agentes da ordem”, como ficou mais uma vez evidente com o caso Amarildo. No entanto, nada disso parece tirar o sono de nossos governadores.
Mas é interessante perceber como, desta vez, algo diferente ocorreu. Há algumas semanas, Peter Pelbart lembrou, nesta Folha, como um verdadeiro acontecimento exige compreender como pessoas se transformam. Ele lembrava uma frase inspirada de Deleuze, que reclamava daqueles que falam muito sobre revoluções, mas esquecem de tentar compreender o devir revolucionário das pessoas.
Pois desta vez a população mostrou sua indignação concreta diante do que parece ser mais uma manifestação da brutalidade criminosa da polícia contra as classes sociais mais vulneráveis. Esta solidariedade é nova e mostra como estamos diante de uma transformação real.
Nesta sociedade em transformação, não há mais lugar para a Polícia Militar.”
Vladimir Safatle é professor de Filosofia da USP e colunista da Folha de S. Paulo.
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