Como a ponta de um grande iceberg, o alto índice pluviométrico registrado na semana passada apenas trouxe à tona um triste fato: o Rio de Janeiro não conta com um plano para grandes emergências ou com um sistema de alerta para evitar tragédias provocadas periodicamente por conta de grandes chuvas, tão comuns em regiões tropicais.
Agora, fala-se histericamente em remoção como solução. Vamos botar os pingos nos is e deixar claro qual é a nossa posição: Somos contra qualquer remoção de moradores. Remove-se lixo. Remove-se escombros, entulhos, mas não se remove gente!
Nos casos específicos onde famílias com menos oportunidades na vida se viram para sobreviver em áreas ecologicamente frágeis e altamente suscetíveis a acidentes e fatalidades, a própria Lei Orgânica do Município, desde 1989, já coloca a necessidade de um processo de reassentamento devidamente precedido de parecer técnico que qualifique os riscos inerentes às respectivas ocupações – além da inviabilidade de correções técnicas – e acompanhado de perto pelas famílias diretamente afetadas e suas representações. Obviamente, se verificamos a condição humana de degradação a que tantas famílias estão submetidas, o mínimo que podemos esperar é que a nova condição de habitabilidade para as reassentadas seja melhor do que a que elas se encontram atualmente. Ou seja, não basta tirar o pobre do local do risco, é preciso levá-lo a uma condição de superação de todos os riscos aos quais ele está submetido!
Não é tão difícil compreender. Se a família está numa encosta, ou numa beira de valão, sujeita a todo tipo de intempérie e desgraça (a tal área de risco), é porque certamente está sujeita a inúmeros outros riscos (risco econômico, risco social, risco de saúde e tantos outros). Ajudá-las a superar esses riscos é obrigação do Estado, mas infelizmente nossos governantes não se lembram disso na hora das suas crises pitiáticas em rede nacional de televisão.
Nosso mandato, há 30 anos, se debruça sobre a questão urbana. Acompanhamos, nas últimas gestões municipais, o crescimento tanto das ocupações dos morros quanto das áreas de baixada. É fato que, atualmente, quase um terço da população do município do Rio de Janeiro mora em favelas e outras ocupações irregulares. Nas últimas décadas, a população favelada cresceu muito mais rápido que a população total da Cidade. Esse fato evidencia uma migração interna, ou seja, pessoas buscando escapar da carestia, da burocracia e da escassez de novas habitações e linhas de transporte minimamente decentes nos bairros formais e encontrando a “solução” nas ocupações irregulares e precárias das nossas periferias de encostas e alagadiços.
Ao mesmo tempo, verificou-se um avanço também avassalador dos grandes empreendimentos imobiliários sobre as mesmas áreas, mas com o diferencial do apoio irrestrito do Estado e da Prefeitura, na correção tanto de limitações impostas pelos sítios, quanto aquelas incorporadas à legislação exatamente para evitar tragédias como as que vimos nos últimos dias. Veja-se as tantas mansões e condomínios exclusivos no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas e quantas contenções de encostas e correções de drenagem foram feitas ali com recursos (humanos e financeiros) do Poder Público.
Por outro lado, quando se trata de comunidades, às vezes centenárias, que abrigam dezenas de famílias pobres e trabalhadoras, a sentença é sumária e sem direito a recurso. Tropas de choque, operários munidos de marretas, picaretas e caminhões da Comlurb para retirar homens, mulheres, idosos, crianças e seus pertences à força. Sem processo, sem direito de defesa, sem sequer saber para onde ir. Essa tem sido a prática da prefeitura já há algum tempo. O prefeito, com orgulho, já manobrou pessoalmente maquinário pesado na remoção de comunidades da Barra da Tijuca, quando, no passado, atuou como sub-prefeito.
Tememos que o termo “remoção” seja flexibilizado e vulgarizado como algo “bom”, resultando na intervenção em qualquer lugar, especialmente naquelas regiões que despertam a cobiça dos empreendedores do setor imobiliário. Tememos que a prefeitura aproveite o ensejo para simplesmente ampliar suas operações sem justificativa, sem respeito à lei, muito menos à vida.
Usando de uma retórica que beira a desonestidade, editoriais criticam a proposta de urbanização das favelas, que vem sendo traduzida como falácia oportunista, clientelismo e outros desvios da política. É óbvio que certas ações (asfaltamento de vias ou mesmo a instalação de equipamentos urbanos) são, com freqüência, uma via de compra de votos e clientelismo político. Mas podemos criticar e combater este tipo de atitude com a boa política, com a participação da população no processo de planejamento e de fiscalização, com cidadania.
Mais grave do que isso é o desmonte e a desqualificação de qualquer processo de planejamento de longo prazo, que privilegie o interesse público e combata a especulação imobiliária. Quando falamos em política habitacional e de urbanização, estamos tratando de questões sérias que envolvem o futuro da cidade. Estamos falando em planejamento do crescimento urbano e das regiões sujeitas a adensamento, preservação regular de encostas e ocupação dos imóveis vazios na cidade (que ultrapassam o deficit de moradia), só para citar algumas soluções possíveis.
Enquanto vivermos sob o império do urbanismo de mercado, do Poder Público subsumido pelas empreiteiras e organizações empresariais, nosso horizonte continuará sujeito a chuvas e trovoadas.
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