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A “boa morte” da natureza bem debaixo do nosso nariz

Com o Campo de Golfe Olímpico e o Resort na Praia da Reserva, prefeitura e Estado do Rio consolidam a prática da “Eutanásia Ambiental”. Eutanásia é uma palavra composta de dois radicais gregos que, em síntese, significa a “boa morte”. Ela advém de práticas muito antigas onde era possível um “suicídio consentido” desde que o cidadão conseguisse convencer um magistrado de que sua vida não mais merecia continuar.

No direito brasileiro, a Eutanásia é classificada como crime de homicídio, passível de todas as punições definidas no Código Penal. O debate contemporâneo sobre a Eutanásia é acalorado e aprofunda questões existenciais sobre até que ponto uma pessoa, ou seus familiares, tem o direito de abreviar a própria vida, ou a vida de um ente querido, que se encontre numa situação clinicamente terminal e irrecuperável, porém, com alguma sobrevida nos seus ciclos fisiológicos mais elementares.

Já a questão ambiental, segundo a Constituição Federal e a legislação que a regulamenta, constitui um direito difuso e indisponível, pertencente a toda a sociedade. Isso significa que se trata de um direito, teoricamente, inalienável: ainda que se queira abrir mão do direito a um meio ambiente saudável, um cidadão, uma coletividade, ou a sociedade como um todo não podem fazê-lo. Mas, nesses tempos em que a nobre arte de governar nos remete ao obscurantismo medieval, a defesa do meio ambiente ficou taxada de “entrave” ao desenvolvimento, elemento de custo dos principais investimentos do grande capital ou meramente um tema para os “ecochatos” de sempre, que desrespeitam as benesses da modernidade. A flexibilidade e a ética do mercado chegaram em definitivo à proteção ambiental.

Não é de hoje que a região sofre com a exploração e o abandono de áreas ambientalmente relevantes
Vejamos o trecho abaixo, extraído das conclusões do relatório final da Comissão Especial de Inquérito instituída pela resolução 264/84 da Câmara Municipal do Rio de Janeiro:

“A administração do urbanismo no Município do Rio de Janeiro e em especial na Barra da Tijuca, foi feita erradamente no passado, continua sendo feita erradamente no presente e já se compromete para o futuro. Na Barra da Tijuca o problema se revela mais agudo porque, como disse com propriedade o Prof. Lúcio Costa, a região da ZE-5, constitui o traço de união entre a zona sul e a zona norte da cidade. Era inevitável que nesta área geográfica, tivessem sido sintetizados todos os erros do passado.

Por outro lado, a região da Barra da Tijuca é, agora, para onde vaza, como um líquido, o crescimento da cidade. A ocupação da área, como previra o Governador Negrão de Lima, ocorreria como uma fatalidade e, nesta fatalidade, era preciso impedir uma tendência, a tendência brasileira a improvisar planos e parâmetros urbanísticos, onde prevalecesse sobretudo a opinião pessoal do ocupante do cargo executivo, tão ao gosto dos tempos autoritários.” (DCM, Suplemento ao Nº 181, 19/11/1984, pg 14)

Em termos históricos, a citação acima já nos dá o resumo da ópera. Trata-se de uma grande orquestração, comandada diretamente pelo senhor alcaide do Rio de Janeiro, com vistas a garantir direitos e rendas para proprietários privados, sobre dois terrenos que somam milhares de metros quadrados. Terrenos onde respiram, sem aparelhos, um sem-número de espécies animais e vegetais, muitas delas consideradas endêmicas. Ou seja, espécies que só existem ali, naquele moribundo ecossistema de restinga situado às margens da lagoa de Marapendi, entre a Barra da Tijuca, o Recreio dos Bandeirantes e o Oceano Atlântico. Dois terrenos que sobreviveram a quatro décadas de grilagem de terras, especulação imobiliária e todo tipo de ataque e desrespeito por parte do “bicho homem” em suas subespécies mais daninhas, o empresariado capitalista associado a governantes omissos ou vendidos.

Desde os anos 1970, o tão aclamado Plano Lúcio Costa fora distorcido, desrespeitado, aviltado e desconsiderado. O saneamento, previsto para ser gerido de forma autônoma e ao custo dos grandes condomínios e shoppings, ficou no papel. Os mais abastados loteamentos proliferaram de modo mais rápido e fulminante que a macega inútil nascida nas terras arrasadas e revolvidas pela extração, nem sempre legalizada, de areia e saibro. Numa aparente tentativa de proteger aqueles ecossistemas de manguezal e restinga, a prefeitura do Rio, no final dos anos 1970, transformou em Parque Zoobotânico, a área onde outrora existia a Reserva Biológica de Jacarepaguá. Mais tarde, em 1989, instituiu-se o Parque Zoobotânico de Marapendi, incorporando toda a faixa marginal de proteção da lagoa de Marapendi e diversos outros terrenos ainda não ocupados pela urbanização especulativa. Nos anos 1990, sucessivos decretos criaram e recriaram a Área de Proteção Ambiental (APA) do Parque Zoobotânico de Marapendi, sobrepondo, assim, a APA ao Parque e, logo depois, o próprio parque foi renomeado para Parque Municipal Ecológico de Marapendi.

Com a chegada do Século XXI, novas transformações são impostas. A lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) finalmente esclareceu e fez valer os princípios da preservação ambiental insculpidos na Constituição Federal de 1988. Suas principais determinações deixavam claros os conceitos de unidade de conservação de proteção integral (onde atividades humanas seriam extremamente restritas) e de uso sustentável (onde atividades humanas seriam permitidas, mas com o enfoque e as restrições da sustentabilidade). Essa diferenciação é crucial para se compreender a intenção da prefeitura do Rio com os dois terrenos, a partir dos Projetos de Lei Complementar 113 e 114 de 2012.

E o que tudo isso tem a ver com o Campo de Golfe olímpico e o tal Resort na praia da Reserva?
Desde sempre, os sucessivos decretos e leis que conformaram tanto o atual Parque Natural Municipal de Marapendi, quanto a sua APA, deixaram um rastro de sobreposições, distorções, omissões e outras exceções. Na proteção ambiental da lagoa de Marapendi e seu entorno, a indeterminação jurídica é a regra, a exceção é a regra. Senão vejamos:

1. Se a Lei do SNUC definiu claramente a diferença entre os dois tipos de unidade de conservação APA (uso sustentável) e Parque (proteção integral), qual o sentido, qual a racionalidade jurídica para a sobreposição de uma no outro? Pelos princípios do Direito Ambiental, quando incidem regras com diferentes graus de restrição sobre uma mesma área, deveria prevalecer aquela mais restritiva. Logo, não interessa se a APA permite isso ou aquilo. O fato de termos ali um Parque Natural Municipal exige que se excluam toda e qualquer possibilidade de ocupação urbana na referida área! Entretanto, o PLC 113/2012, no terreno do campo de golfe, simplesmente ignora a abrangência do Parque Natural Municipal de Marapendi e altera um anexo do decreto que criou a Área de Proteção Ambiental. O detalhe é que o anexo nunca foi publicado, logo, nunca adquiriu validade jurídica! É literalmente um absurdo em cima do outro!

2. Existe outro terreno, doado para por um particular para o Poder Público nos anos 1970, e que agora está sendo retirado da área do Parque de Marapendi para ser anexado ao Campo de Golfe. Esse terreno tem uma averbação na escritura indicando que sua utilização deve se restringir única e tão somente à preservação e à recuperação ambiental. Ou seja, mesmo retirando-lhe do alcance do Parque de Marapendi, o terreno em questão jamais poderia ser cedido para um empreendimento, fosse ele público ou privado. Entretanto, o PLC 113/2012 simplesmente retira esse terreno do Parque de Marapendi e imediatamente autoriza uma espécie de “remembramento” de um terreno PÚBLICO com outro PRIVADO. Ou seja, ainda que formalmente a Prefeitura continue dona do terreno, ela repassa seu uso para o proprietário privado que será o dono do campo de golfe. Tudo isso num único artigo do PLC 113/2012!

3. Graças aos sucessivos prefeitos que se omitiram de estabelecer uma Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS), a legislação da Cidade do Rio não tem uma definição clara sobre o seu zoneamento. Assim, por exemplo, as Zonas de Conservação da Vida Silvestre (ZCVS) e as Zonas de Preservação da Vida Silvestre (ZPVS) variam de lei para lei na sua definição, o que permite que, agora, o alcaide nos brinde com uma ZCVS no terreno do Campo de Golfe que, por mais bonitinho que venha a ficar, não terá a menor condição de dar suporte aos ciclos de vida das espécies animais e vegetais sobreviventes.

4. Em tempos idos, foi desafetado um terreno do Parque de Marapendi para facilitar a implantação do canteiro de obras do emissário da Barra da Tijuca. E porque diabos a Prefeitura não o reincluiu no parque após o encerramento das obras? Hoje, segundo dados publicados na imprensa, este mesmo terreno está sendo devastado em caráter definitivo para a implantação do Resort da rede Hyatt, em parceria com a Patrimóvel.

5. O Parque Natural Municipal da Barra da Tijuca foi criado num pequeno trecho da faixa de terra entre a lagoa de Marapendi e a praia da Reserva. Um trecho que já era abrangido tanto pelo Parque de Marapendi quanto pela sua APA. Portanto, para que criar esse parque? Sua única função será a viabilização de uma Operação Urbana Consorciada, com transferência do direito de construir, além das desapropriações determinadas pela Legislação Federal. Os supostos proprietários dos terrenos ali contidos, com a aprovação do PLC 114/2012, em vez de serem desapropriados, poderão auferir lucros e mais lucros em quaisquer outros terrenos de sua propriedade localizados em qualquer ponto da região da Barra da Tijuca, das Vargens ou do Recreio dos Bandeirantes. Ou seja, temos ali um Parque Natural Municipal que já fora criado de forma inconstitucional, com um objetivo no mínimo duvidoso, e agora vira objeto de uma Operação Urbana que não traz absolutamente nenhum ganho para a Cidade.

O argumento que justifica “tecnicamente” toda essa barbárie é o fato dos terrenos encontrarem-se ambientalmente degradados, com sua vegetação e comunidade faunística rareadas após tantas décadas de exploração e abandono. Logo, como o “paciente” já está mesmo doente, não há que se preocupar em salvá-lo. E é só um argumento mesmo, afinal, não há técnico ou cientista que assuma a responsabilidade por isso.

A “boa morte”, transformando toda aquela área num garboso campo de golfe ou num resort de alto luxo, é apresentada como solução plausível pela única e exclusiva vontade política dos gestores municipais. E é aí que nos perguntamos: até que ponto uma pessoa, uma cidade ou uma sociedade inteira tem o direito de abreviar a vida de centenas de espécies, de um ecossistema inteiro, que se encontre numa situação ambientalmente degradada, porém sem que lhe seja dada a mínima possibilidade de recuperação?

Até que ponto pode, o Poder Público, atuar como assessor direto de interesses privados em empreendimentos que chegam à casa dos bilhões de reais? E a secretaria estadual do Ambiente? Através das suas instâncias deliberativas-chapa-branca, simplesmente se absteve de cobrar pelo menos um licenciamento ambiental mais consistente. Nenhum desses empreendimentos contará sequer com um EIA/RIMA. Lamentável.

Essa é a prática continuada de dilapidação do nosso patrimônio ambiental. Eis consolidação da entrega de nossas matas para a especulação imobiliária mais mesquinha e excludente. Eis a “Eutanásia Ambiental” em sua forma mais elaborada e sofisticada!

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