… Nisso já são cinco e tal, seis da manhã. Há algum tempo voltei a caminhar, tentando rever uma forma de adquirir forma e arejar o ora confuso cerebelo, que já não segue mais matutando nos conformes. A vida clama e o corpo reclama. E literalmente inflama. Os ventos juvenis sopram muito ao longe, e me sobram rusgas vividas, que me geram rugas indevidas… e a neve branca-acinzentada dos tempos já me cobre os pelos do corpo.
Aporto na velha Lapa, Rua Joaquim Silva, e parto para subir os cento e dois degraus que me levam ao ambiente de trabalho. Não sem antes dizer um “fala, irmão” ao porteiro Manuel amigo, que já labuta com seu vigor nordestino. Já no âmbito do labor diário, com a consciência e o corpo pelados, vou me travestindo num caminhante de apetrechos atléticos, tirante a protuberância abdominal que já me tenta embaraçar o religioso divino ato de fornicar.
Providencialmente encharcado de alguns copos de água, de origem duvidosa, desço os cento e dois degraus que me remetem ao “rol” do Edifício Utinga. Já-já pegando a Rua Conde de Lages. Sou eu, em plena Lapa vadia que se torna Glória, onde “desadmiro”, já cedinho, a vida inglória dos humanos que se encolhem aglomerados nas calçadas engraxadas pelas sobras da feira livre e pela gordura de chorume que escorre solta do lixo não recolhido por quem deveria recolher o lixo. Gente humana, famílias humanas que pousam sob um céu sujo de marquises por cair.
Viro na Rua da Glória, onde a plebe ruge. Cala de fome e de desespero, de desesperança com o presente, pois o futuro deve ficar sempre para o amanhã. Há que se sobreviver e comer o hoje. Chego à Rua Cândido Mendes, onde um burburinho comercial agitado já vai acordando as gentes. Enquanto agentes inconsequentes, privados de bom senso e eivados de uma autoestima servil, de cassetetes em punho, vão despertando os sonolentos “indigentes”, para que se levantem e vão perambular em outra freguesia. E vão fazer suas necessidades em outra freguesia, e vão buscar sustento em outra freguesia. E que metam seus trapos, filhos, cachorros e gatos, dentro de um saco ou em qualquer outro lugar, e vão perturbar em outra freguesia. Pobre do pobre que humilha outro pobre, que é ainda mais pobre que ele, que também pobre é. Outro contingente, também muito pobre – alguns puxando carroças de duas rodas e de tração humana – já se prepara para ganhar alguns trocados, vendendo quinquilharias que ficam esparramadas pelas calçadas: quadros velhos, utensílios para cozinha velhos, brinquedos velhos, roupas velhas…
Subo a Rua Candido Mendes e entro na Rua Hermenegildo de Barros. Por ali já existe uma brisa mais fresca, com cheiro de frutas de passarinhos caídas pelo chão. E já da para ouvir a gargalhada estridente das Maritacas da terra. Uns Saguis também macaqueiam na fiação elétrica, como aquela gente insana de circo mambembe, saltando no vazio sem a proteção de redes. A arquitetura começa a mudar. Já estou no Baixo Santa do Alto da Glória.
Orlando a íngreme ladeira de pedras de paralelepípedos, sobreviventes casarões se impõem ao curso do progresso caudaloso e teimam em se mostrar vaidosos. Mesmo que muito machucados e maltratados pelos idos. E alguns parecem chorar, pois fazem escorrer por suas janelas – que mais parecem olhos tristonhos – lágrimas verdes de Samambaias. Outros têm seus muros enforcados por raízes de figueiras, frondosas serpentes amazônicas que estrangulam o construir do urbano.
Subo, subo e pego a Rua Dias de Barros. Passando pela Casa Paschoal Carlos Magno, me deparo com gente esculpida em estátuas de cimento. Muitas são cavernosas, de olhos mortos. Outras barbudas. Outras até sensualmente desnudas, de seios rijos e pontiagudos, apessegados, de modo a causar certo constrangimento erótico. Todas elas sempre a espreitar os transeuntes, curiosos ao vê-las petrificadas na mesma estatura. E subo mais, chego ao Largo do Curvelo, uma velha estação do bonde, hoje colorida por desenhos modernosos. Bonde dos carnavais e Carmelitas, e Céu na Terra. Bonde dos funerais dos inocentes, vítimas de governantes indecentes. Bonde da corrupção e da ambição, que mata de morte matada nosso Rio. Rio poluído de azedume e sangue. Sangue que pulsa e salta das veias humanas e conclama sua gente a protestar, a ocupar suas avenidas, vielas, ruelas.
Ainda há pouca alma viva pastando na bucólica Santa Teresa. Os bondes ainda não circulam. É cedo. Um ou outro ônibus desponta com seu motor berrante, quebrando o silêncio de interior que ainda mora por ali. Silêncio, vez por outra, também interrompido pelos estampidos cuspidos pelos fuzis que agora nos aterrorizam.
E entro na Rua Paschoal Carlos Magno, cume do meu caminhar. De lá vejo o vistoso Relógio da Central do Brasil. Acabo de reparar que nunca reparei a hora que o relógio marca. É a Estação Central dos Silva, dos Santos, dos Souza, dos muitos coadjuvantes filhos do Brasil que, com certeza, superam, em número e pobreza, a nobreza e celebridade representadas pelos Montenegro das hipnotizantes telas do cinema. É a arte do sobreviver, representada, no grande picadeiro da vida, pelos principais atores do ser.
E o casario sobrevivente do passado, que ainda arranca alegrias ao futuro, se faz ainda mais presente. Trilhos de aço me mostram as trilhas que mais parecem energizadas enguias a se contorcer. Virando a esquina, vejo lá o Largo dos Guimarães. Uma, duas, três pessoas sentadas na estação do bonde, esperando ônibus. Os botequins, ainda curtidos da ressaca da noite boêmia, seguem com suas portas cerradas. Mas uns copos e garrafas, acomodados pelos cantinhos, não permitem disfarçar o sopro de teor alcoólico que inebria as redondezas. Notam-se também, em certas bibocas, algumas vestes penianas atiradas ao relento… gozo de abortos espontâneos de futuros rebentos.
Ao longe, miro um cidadão que alcunhei “Biter Russo”: um andante meio grotesco, curvo, de olhos bem claros, barbas esbranquiçadas, de pele avermelhada pelo clima trópico, cabelos longos (branco-aloirados), de trajes um tanto esfarrapados, com um saco plástico numa das mãos, revirando o lixo das casas… Parece um catador de latinhas de alumínio, hoje “profissão” de muita gente que vive do catar latas para sobreviver. Triste… Penso no que será feito de meus netos, e que futuro eles terão nesse mundo de “governantes” vira-latas. E lá vem e vai ele, cabisbaixo, mudo pra mim, talvez atento para o mundo, parecendo ter um sufocado sorriso, que alguma mágoa da vida deve lhe ter “despatrocinado”. Como essa vida é estranha.
Começo a descida, já tomando o rumo da Rua Morte Alegre… e desço. Sigo por demais encantado com as casinhas bonitas que brotam pelo caminho. Umas ainda têm varandas de florido gostoso e colorido, de jeito aconchegante. Já passei pelo Templo Anglicano e agora contorno a Igreja Ortodoxa Russa. Que o vivenciar livre nos livre definitivamente dos czares e dos reis que se julgam deuses na terra. Há os que se agarram na crença de um Deus no céu.
… Mas não sinto cheiro de café. Ainda é cedo. Ao contrário do ambiente favelado onde vivo, não vejo cachorros perambulando pelas ruas. Vejo, sim, agora, alguns cães acompanhados por pessoas. Alguns rumando para o trabalho. Outros vestidos de um esportivo exuberante, de modo que dá pra se avistar de longe o gingar carioca de suas bundas. Sim! São cariocas. Estrangeiros não costumam ter bundas tão bem esculpidas…
O clima virou. Já sinto no ar um exalar do lixo que aflora nas calçadas, misturado com o tóxico da flatulência que explode das traseiras dos automóveis. A paisagem muda e a pobreza é que orla a ladeira de pedras de paralelepípedos que vai ficando pra trás.
Chego ao Bairro de Fátima. O real volta a povoar minha caminhada. A batalha agora consiste em varar a Rua do Riachuelo. O alvoroço asfáltico roubou o lugar do lugar com jeito de interior. O buzinar da frota rodoviária, os ambulantes falantes nas calçadas, o ir e vir do povo trabalhador, tudo isso me informa que acabo de mergulhar no tal Rio… Aquele dos adjetivos diversos. Navego um pouco mais e chego ao velho Aqueduto da Lapa, os Arcos da Lapa. O povo que vive da rua volta a ser o ator principal. Não raro os vejo brigando por uma valiosa garrafa de pinga barata. Combustível que deve servir pra que se afastem, pelo menos um pouquinho, da vida bandida e louca que os afeta o próprio viver. E também vejo “pleibóis” sonâmbulos, de narizes escorridos e bocas entortadas pelo pó branco dos pesadelos. É a Lapa do narcótico que adormece, a Lapa que nunca dorme.
Já de volta à Rua Joaquim Silva, e já um tanto cansado. Nada que me impeça de virar à direita e subir a Rua Manoel Carneiro. Rua que quase ninguém conhece, pois é reconhecida como a Escadaria Selarón. Um chileno desgarrado que trouxe na bagagem um colorido enlouquecido a um local que tinha “pouca” vida. Subo os duzentos e quinze degraus de azulejos coloridos, entremeados de platôs de paralelepípedos toscos. A Escadaria, onde o verde e o amarelo predominam, é cravejada de peças multinacionais multicoloridas, e bordada nas laterais por ladrilhos de um vermelho revolucionário. Jorge Selarón, na sua alucinação artística, deve ter se iluminado de uma certa revolução permanente, dessas que, de degrau em degrau, vão subindo ao topo do mundo e unindo os povos do planeta, mirando um objetivo comum: a comunhão universal.
A essa hora da manhã a turistada ainda não invadiu o local. Vez por outra, avisto uns poucos moradores de rua ou um gari que trabalha por ali. Figura certa de se encontrar, com certeza, é um maconheiro magricela careca e maluco, ali pelo centésimo décimo segundo degrau. Postado sentado na entrada do portão de sua casa, o cara fica mirando o celular, balançando os ombros e cantarolando, em voz mansa, com um inglês notável – eu só noto, pois não entendo bulhufas da língua estrangeira -, sem se importar com que passa. Vez em quando ele dá uma chupada longa e forte no baseado. Com o polegar e o indicador, ele aperta firmemente o nariz, sacode o avantajado crânio, como quem que aproveitar ao máximo a baforada no bagulho. Em seguida volta ao seu show independente a particular. Confesso que me aproveito um pouco do fumacê que lhe escapa. Termino minha subida, recupero o fôlego e desço os duzentos e quinze degraus.
Estou novamente à Rua Joaquim Silva, ando mais uns cem metros. De volta ao Utinga. Subo mais uma vez os cento e dois degraus, rumo ao trabalho. Pronto… pronto pra mais um dia. E assim caminho minha humanidade, contando estórias na caminhada. Subindo e descendo ladeiras, escalando escadarias, transpondo ruas de pedras de paralelepípedos e de massa asfáltica. Passando pelo passado, prezando o presente e sem desprezar o futuro. Cruzando com todo tipo de gente. Gente que se acha mais gente, gente tida como indigente. Andando com loucos fora dos trilhos e esfarrapados andarilhos, por entre obras de velha arte e modernas arquiteturas de ladrilhos.
Ricardo Crô
Vez por outra “cronista” do cotidiano.