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Entrevista: Lei Geral da Copa e a ingerência da FIFA

Para a acadêmica e pesquisadora Nelma Gusmão de Oliveira – que faz tese de doutorado no IPPUR/UFRJ sobre o impacto dos megaeventos no país – a Lei Geral da Copa evidencia a ingerência de uma instituição privada sobre a ordem jurídica de um país. O Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ analisa questões urbano-regionais de forma interdisciplinar a partir da ótica da Sociologia, Economia, Geografia, Urbanismo, Ciência Política e Direito.

Segundo Nelma, a Lei da Copa não pode ser compreendida de forma isolada. A legislação integra um conjunto de rupturas e realinhamentos produzidos no quadro político-institucional do Brasil sob a justificativa da organização e realização de duas edições dos mais poderosos megaeventos esportivos do mundo, a Copa do Mundo FIFA 2014 e os Jogos Olímpicos de Verão de 2016.

Mudanças no quadro jurídico brasileiro em função de megaeventos não são exclusividade da experiência brasileira. Além da Lei Geral da Copa, Nelma lista outras leis igualmente polêmicas por desafiarem a ordem institucional estabelecida, como é o caso do Regime Diferenciado de Contratação, do Ato Olímpico, medidas tributárias para a Copa 2014 e de tantas outras produzidas também na escala local da cidade do Rio de Janeiro. Segundo a pesquisadora, estão perfeitamente inseridas num contexto, onde, em menor ou maior intensidade, regras excepcionais são produzidas como resposta às exigências do Comitê Olímpico Internacional (COI) ou da Fédération Interantionalle de Football Association (FIFA) em cidades e países que sediam eventos promovidos por essas instituições.

Com base na teoria defendida pelo jurista e filósofo italiano Georgio Agamben de que o Estado de Exceção tem se tornado um paradigma de governo na contemporaneidade, Nelma afirma que a realização de megaeventos esportivos produz um ambiente extremamente favorável ao autoritarismo consensual que produz verdadeiras “cidades de exceção” (termo cunhado pelo professor Carlos Vainer por analogia ao estado de exceção dos governos ditatoriais).

De acordo com Nelma, este ambiente propício não se dá apenas devido à urgência produzida pelo seu rígido cronograma, como tem sido recorrentemente alegado. Nelma acredita que tal condição só se viabiliza graças à crescente autonomia econômica, política e jurídica, conquistada pelo campo de produção do espetáculo esportivo, em uma delicada costura que atravessa mais de um século e assume como principais protagonistas a FIFA, o COI e os interesses por eles representados.

Se cresceu sob a égide da elegia ao esporte sem qualquer interesse econômico ou comercial, a autonomia das entidades transforma-se quase em soberania, destaca Nelma. Durante a década de 80 e por iniciativa do COI, foi criada a Corte Suprema Arbitral (CAS). A CAS, que atua exclusivamente com base nas regras estabelecidas pelas duas instituições, é a única corte reconhecida, em todos os documentos oficiais, como capaz de resolver qualquer diferença ou disputa relacionada aos eventos por elas coordenados. Abaixo, a entrevista concedida ao mandato.

Quais as questões mais graves referentes a esta lei?
Em linhas gerais a Lei da Copa trata de estabelecer exceções à ordem jurídica vigente para 4 situações especiais relacionadas à Copa do Mundo de 2014: a proteção e exploração dos direitos comerciais relacionados ao evento, a flexibilidade na concessão dos vistos de entrada e permissão de trabalho no país, a responsabilidade civil da União sobre danos causados à FIFA ou a terceiros durante a preparação e realização do evento e a venda de ingressos.

Algumas reinvindicações da FIFA não abordadas na lei, como a restrição do direito à meia-entrada para estudantes ou a autorização do consumo de bebidas alcóolicas nos estádios, tratadas no discurso do Governo Federal como afirmação da soberania nacional, não estão de fato encerradas. A lei simplesmente não aborda os assuntos, mas também não garante um tratamento homogêneo em todo o território nacional. De fato, estas questões são tratadas de forma diferenciadas nas legislações estaduais e municipais.

O que o Governo Federal faz, por trás desse pretenso discurso de autonomia, é simplesmente lavar as mãos e transferir a responsabilidade para os estados e municípios, que agora já começam a sofrer com as pressões da entidade.

Os direitos de propriedade da marca Fifa são um ponto polêmico…
Gostaria de me dedicar especialmente às duas primeiras questões abordadas na lei. Em relação à primeira delas, quatro aspectos são tratados: os direitos de propriedade da marca de titularidade da FIFA, os direitos da captação de imagens sons e radiodifusão, o estabelecimento de áreas de restrição comercial e vias de acesso e os crimes relacionados.

Para proteger o direito da propriedade da marca a lei estabelece regime especial para os procedimentos junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) no que se refere aos pedidos de registro de marca que consistam em “Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA”.

Em nome de prevenir os crimes de uso indevido dos símbolos e de “marketing de emboscada” por associação ou intrusão, várias medidas são propostas com penalidades que incluem multas, indenizações extorsivas e detenção por um período que pode variar entre 3 meses e 1 ano. Dentre estas medidas, encontra-se a criação de territórios comerciais de uso exclusivos dos “parceiros” dentro da cidade. Os limites desses territórios, “Locais Oficiais de Competição, suas imediações e principais vias de acesso”, que serão estabelecidos por “autoridade competente, considerados os requerimentos da FIFA ou de terceiros por ela indicados” deixam margem a uma leitura bastante subjetiva, que pode envolver, em última instância, toda a cidade.

A lei também restringe o direito de cobertura do evento pela imprensa, uma vez que as redes de televisão que não são proprietárias do direito de exclusividade de transmissão têm autorização para exibir, apenas em noticiários, alguns flagrantes do evento que não poderão ultrapassar em seu total a soma de 30 segundos ou, em caso de partidas, o tempo equivalente a 3% do tempo da parida. Vale registrar que a FIFA ainda protesta sobre este quesito por considerar uma concessão muito grande.

O segundo aspecto abordado, é a condição especial para a concessão de vistos de entrada ou autorização de trabalho para estrangeiros cuja permanência no país se relaciona de alguma forma à Copa do Mundo de 2014. De acordo com a lei, o simples fato de portar um ingresso para um evento, já concede ao seu portador o direito de ter um visto emitido em caráter prioritário e sem qualquer custo. Também serão objeto de pronto atendimento e isenção de custos as solicitações de autorização de trabalho para estrangeiros realizarem qualquer serviço que se vincule ao evento, à FIFA, afiliados, prestadores de serviço e parceiros.

Você poderia citar alguns precedentes para esta lei?
No Brasil, o Congresso Nacional já aprovara conteúdo similar quando votou em 2009, antes mesmo da escolha do Rio de Janeiro para sede dos Jogos Olímpicos de 2016, a Lei nº 12035 denominada “Ato Olímpico”.

Criado para garantir a candidatura do Rio de Janeiro a sediar os Jogos Olímpicos de 2016, o Ato Olímpico também estabelece medidas para a proteção da propriedade da marca de titularidade do COI, para a prevenção contra o denominado “marketing de emboscada”, e para a flexibilização de barreiras migratórias. O controle dos espaços públicos fora das instalações esportivas durante os Jogos de 2016 ficaram por conta do decreto municipal nº. 30379 de 01 de janeiro de 2009 que, ao tratar de questões semelhantes acrescenta algumas não abordadas na lei federal.

Se a Lei da Copa fere a soberania do país em sua capacidade de autodeterminação da política de relações internacionais, quando flexibiliza as condições para obtenção de visto de entrada e permissão de trabalho no país, o Ato Olímpico vai muito além. Ele simplesmente determina a dispensa do visto de entrada no país para os estrangeiros vinculados à realização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Para garantir o ingresso e permanência dessas pessoas durante o período que envolve o evento, e no período anterior e posterior, apenas se fará necessária a apresentação do passaporte válido, em conjunto com o cartão de identidade e credenciamento olímpico autorizado pelo IOC, independente do país de origem do seu portador.

Tal medida, entretanto passou por votação e foi aprovada no Congresso Brasileiro sem provocar nenhum tipo de debate ou reação na sociedade. Afinal, ela foi discutida quando ainda nem sabíamos se de fato iríamos ou não sediar os Jogos Olímpicos de 2016.

Leis com conteúdos semelhantes também foram estabelecidas em outros países como Alemanha e África do Sul, no caso da Copa do Mundo, e Sydney, Atenas, Pequim e Londres, no caso dos Jogos Olímpicos.

De fato, desde 1957 o COI já exigia, em um documento de informações para as cidades interessadas em organizar o evento, a garantia de livre entrada no país para as delegações de todos os Comitês Olímpicos Nacionais por ele reconhecidos. Nas Regras Olímpicas de 1975, o Cartão de identificação já era apresentado como substituto ao visto de entrada aos países que sediam o evento. Do mesmo modo, a preocupação com a Marca Olímpica e necessidade de sua proteção já era tratada, embora num grau de sofisticação bem menor, no bojo do conjunto de regras olímpicas publicado no ano de 1956.

Vale notar, entretanto, que respondendo a exigências semelhantes, algumas peculiaridades, na redação de cada lei, deixam claro até onde vão os limites entre a soberania do país em questão e o poder das instituições internacionais respectivas (FIFA ou COI). No caso do equivalente ao Ato Olímpico de Londres, apenas citando um exemplo, existe um artigo redigido apenas para tratar dos limites do direito de propriedade à marca olímpica, enumerando uma série de atividades onde o uso da marca não é considerado como violação ao direito de propriedade do COI, dentre elas, a produção acadêmica e artística.

De que forma esta lei aponta para o caráter capitalista dos megaeventos?
Pode parecer estranho que duas instituições com história, organização e até modo de ação, tão distintos, possam ter um sistema de funcionamento tão similar. Na comparação de documentos oficiais ou mesmo de leis produzidas em função deles (ainda que a disponibilidade desses documentos e registros em geral sejam muito mais raros na FIFA), percebe-se inúmeros pontos em comum.

Não é apenas o amor pelo esporte que une a FIFA e o COI. Se a autonomia do campo de produção do espetáculo esportivo foi gradualmente construída ao longo de um século e esse sistema de controle já se expressava de forma embrionária cerca de 50 anos atrás, foi a partir do final da década de 70 e início dos anos 80 que ele começou a se tornar muito mais sofisticado. Tal fato se deve aos programas de marketing implantados nas duas instituições por esta ocasião.

À frente desses programas, dois homens fortes e autoritários. Na FIFA, encontrava-se João Havelange, o queridinho dos generais da ditadura militar no Brasil, que foi eleito presidente da Associação em 1975 onde permaneceu até 1998. No COI, estava Juan Antonio Samaranch, presidente da instituição entre 1980 e 2001 e que teve como parte integrante do seu currículo uma longa participação no governo fascista do General Franco na Espanha.

Por trás desses dois homens, um único homem, Host Dassler. Na busca de assinar contratos para que federações esportivas utilizassem roupas e assessórios da marca Adidas, empresa da família que administrava, Dassler acabou por estabelecer estreitos laços de troca com todos os principais dirigentes de organizações esportivas do planeta, tornando-se o homem mais poderoso do universo dos esportes desde o início dos anos 70 até a sua morte em 1987. Durante este período, não houve eleição para qualquer cargo esportivo importante no mundo – sem excluir as eleições de Havelange na FIFA e Samaranch no COI – em que Dassler não tenha exercido uma influência fundamental. Esta afirmativa é consensual entre todos os autores que tratam da questão, inclusive em textos de pessoas de dentro do próprio COI, como Michael Payne e Dick Pound.

Foi Dassler o grande idealizador dos programas de marketing das duas instituições. Na base desse programa não se encontra a venda de espaços publicitários. O que é vendido é, por um lado, o direito exclusivo de associar uma determinada marca em cada categoria de produto aos valores da marca dos jogos e, por outro, o direito de exclusividade na transmissão de TV em cada território do mundo.

Na verdade o que se vende, e muito caro, é exatamente a ideia de valores não comerciais associadas ao “fair play”. Daí a importância primordial que conferem à proteção da marca e ao controle dos espaços publicitários fora dos locais de competição, uma vez que, dentro desses locais, o que se quer vender é a imagem de não comercialização.

Desse modo, para se manterem de pé – com um faturamento por quadriênio de mais de US$ 5 bilhões, no caso do COI, e que chega perto dos US$ 4 bilhões, no caso da FIFA –, estas instituições se apoiam no funcionamento de uma engrenagem movida basicamente por três rodas dentadas: a venda da exclusividade de direitos de transmissão, a venda de “parcerias” exclusivas por categoria de produto e as cidades em disputa para sediar os eventos.

Para manter a marca valorizada (seja a Olímpica ou a da FIFA), e consequentemente o faturamento da instituição proprietária, esta engrenagem precisa se manter girando num ritmo equilibrado. Quanto mais valorizada a marca, maior a disputa entre cidades por se associar a ela e se manter no centro da mídia mundial.

Consequentemente, maior será também o poder de barganha e a capacidade de exigência da instituição respectiva em relação a estas cidades e mais espetacular se tornará a produção evento (ainda que a custos, econômicos, sociais e políticos muito altos). Quanto mais espetacular a produção do evento, mais eficiente no atendimento às expectativas dos “parceiros”, maior a disputa pela exclusividade da transmissão, maior o número de expectadores atingidos, o que retroalimenta a valorização da marca e assim sucessivamente. Caso uma dessas rodas emperre, as outras também tendem a emperrar e a engrenagem se vê ameaçada de entrar em colapso.

É para atender ao funcionamento dessa engrenagem que Leis como a da Copa são propostas. Não podemos esquecer, entretanto, que, dentro da escala do país e da cidade, outras engrenagens se movimentam na articulação de outros interesses. As exigências impostas pelas instituições internacionais, especialmente aquelas em relação aos prazos e grandiosidade das instalações e obras de infraestruturas, se encaixam aí perfeitamente na legitimação de outras leis de exceção que se destinam especialmente para viabilizar os grupos de interesses que atuam localmente e, desse modo, manter em movimento a roda das cidades em disputa.

Pequenos comerciantes e ambulantes serão prejudicados?
Em minha opinião, esta é uma das situações mais graves impostas pela lei. Quando estabelece territórios comerciais exclusivos dentro da cidade, além de proibir o comércio ambulante, a lei também proíbe a comercialização de produtos e publicidade de concorrentes dos “parceiros” comerciais da FIFA ou de patrocinadores do evento dentro desses territórios. Com base nesse critério, não poderá permanecer aberto o estabelecimento comercial que vender: cerveja que não Budweiser, refrigerante que não coca-cola, sanduíche que não seja McDonald’s, qualquer produto de higiene que não seja Johnson-Johnson, chocolate que não seja Nescau, calçados que não sejam Adidas, eletrodoméstico que não seja Sony, ou, quem sabe, até galeto que não seja Seara.

Situação similar ocorreu na África do Sul, denunciada em matéria da folha de São Paulo em 04 de abril de 2010, intitulada “Nem vuvuzela escapa da pressão de patrocinadores”. Nesse caso, o que está em jogo é o próprio direito de estar e se comportar na cidade, em seus espaços públicos e até mesmo privados, como é o caso dos estabelecimentos comerciais.

Que críticas faz às regras para a lista de símbolos e marcas de propriedade da FIFA?
Dentre os símbolos protegidos pela lei, além dos conhecidos emblemas e mascotes da FIFA e eventos correlatos, incluem-se palavras, expressões e outros “Símbolos Oficiais” indicados pela referida entidade “em lista a ser protocolada no INPI, que poderá ser atualizada a qualquer tempo”.

Por outro lado, dentre as condições especiais para esse reconhecimento estão os prazos diferenciados, isenção total de custos e a dispensa de qualquer necessidade de comprovação da condição de “alto renome” ou da caracterização como “notoriamente conhecidas”, como é de praxe para que a propriedade de uma marca seja reconhecida. Resumindo, a lei aprova uma lista para a qual não existe qualquer tipo de limite.

Outro aspecto importante é que, ao tratar da punição para os crimes de “utilização indevida de Símbolos” em produtos para venda, a redação da lei é complicada. Ela abre exceção para o uso jornalístico, mas não para outros usos igualmente relevantes. Quanto à produção acadêmica (venda de livros, revistas científicas, etc), por exemplo, o parágrafo que trata das exceções não faz nenhuma referência e, o que não está na exceção, faz parte da regra, ou seja, está incluída dentre os crimes de utilização indevida.

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