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Inimigo inexistente

Jardim Botânico se defende de inimigo inexistente

por Julio Feferman

“O artigo “O Jardim sob ataque” de Liszt Vieria, presidente do Instituto Jardim Botânico, publicado na seção “Opinião” de O Globo (19 de fevereiro) evidencia a contradição no que tange a posição do instituto em relação a questão fundiária da comunidade do Horto e revela conceituação ambiental equivocada.

Liszt Vieira é ambíguo ao afirmar que está aberto ao diálogo, ao mesmo tempo que contrapõe a comunidade a valores ambientais. Para tal, além do título alarmista – de onde, afinal, viriam os “ataques” ao Jardim? – se utiliza de declaração infeliz de Burle Max que peca pela falta de compreensão do contexto histórico-urbano de ocupação da área e da consequente alteração do bioma local.

É notório que a extensão do Horto foi ocupada (e alterada) desde o século XVI, primeiro por engenhos de cana e depois por fazendas de café, atividades de alto impacto ambiental. Informações históricas encontram-se amplamente documentadas e detalhadas no site do Museu do Horto (www.museudohorto.org.br). Isto significa, naturalmente, que o Horto sempre foi constituído pelo entrelace do semi-urbano com a área limítrofe da Floresta da Tijuca, que o circunda.

Um mapa de uso e cobertura do solo, do Instituto Pereira Passos, designa o arboreto como área de “Floresta Alterada” e o Horto como área “Urbana não consolidada”. Curiosamente, o mapa também designa como área “Urbana não consolidada” um polígono de centenas de edificações na área “formal” do Jardim Botânico, compreendendo desde a Rua Sara Vilela até a Rua Corcovado.

Por sua designação urbana não consolidada e, principalmente, analisando a ocupação histórica por fazendas e suas senzalas, depois moradias, depois institutos e empresas, o ambiente do Horto há séculos não representa área de interesse científico. A mata que ali um dia existiu foi há muito transformada. É fato que a própria Floresta da Tijuca não mais constitui floresta primária, aquela que nunca foi tocada pela ação do homem, embora sofra ameaça constante pela expansão de condomínios e casas de alto padrão.

Liszt Vieria atribui a supostos “talhões florestais” o “grande interesse botânico” na área. Em nome da boa informação, talhões florestais são áreas de floresta implantada, voltada para o suprimento industrial, prática utilizada na indústria de celulose, como exemplo. Não se sabe, portanto, a que se refere Liszt Vieira, mas certamente não haveria qualquer valor botânico nos remanescentes da ocupação que ali se deu através dos séculos, exceto, talvez, pelo plantio direto. Nem por isso, claramente, deve-se descuidar do meio-ambiente. Neste contexto, entretanto, devemos nos integrar a uma conceituação mais contemporânea de ambientalismo, que contempla também o homem e suas necessidades, harmonizando a preservação à ética e consciência social, e não contrapondo um ao outro, como pretende Liszt Vieira. Para deixar bem claro, não mais se trata de uma luta entre o meio-ambiente e o homem, e sim da integração e convívio sustentável dos dois, a que poderíamos qualificar de uma visão sócio-ambiental.

À outra tese sustentada por Liszt Vieira, que diz que a expansão do arboreto é necessária para o plantio de “milhares de espécies ameaçadas”, cabe alguns esclarecimentos para que o público tenha acesso à informação correta. O cultivo de espécies ameaçadas não constitui necessariamente em ação preservacionista. Não se salva uma espécie da extinção cultivando exemplares em local controlado. Seria o mesmo que dizer que estaríamos salvando os tigres de bengala (há muito extintos) ao manter um indivíduo em cativeiro. Populações de plantas e animais são preservados apenas quando mantemos a integridade de seus habitats naturais e o número populacional acima de determinado limite mínimo, proporcionando-lhes a oportunidade de se reproduzirem naturalmente. Há alguns experimentos controlados, como o projeto Tamar de preservação de tartarugas marinhas, que introduzem tartarugas criadas em cativeiro às populações naturais. Mesmo estes projetos são revestidos de muitos cuidados, pois cientistas não têm o domínio de todas as variáveis ecológicas para se reverter um processo de extinção através da introdução de indivíduos no meio-ambiente, sem possíveis efeitos colaterais. Seguro, sim, é a preservação de habitats, implementação de corredores ecológicos e controle do impacto antropocêntrico, entre outras medidas.

Caso o Jardim Botânico tenha a intenção de agir como viveiro para subsequente plantio em áreas como o Cerrado, a Floresta Amazônica ou os reminiscentes da Mata Atlântica, seria mais apropriado implementar a infraestrutura distante da cidade, onde poderá contar com terra suficiente para o cultivo na escala de suas pretensões. De outra forma, me parece uma justificação pífia para o deslocamento de moradores que residem na área do Horto a não menos de 50 anos.

As declarações de Litsz Vieira não contribuem para o esclarecimento das intenções do instituto. Expandir a área de visitação do parque, removendo moradores históricos, cuja posse está resguardada por ampla legislação nacional e internacional, me parece um equívoco. Também não faz sentido a argumentação de que os moradores estariam impedindo o avanço científico. Ora, estufas e outras infraestruturas para a pesquisa científica podem ser instaurados em locais diversos, não sendo necessário deslocar moradores. Talvez o instituto poderia até investir na manutenção de sua infraestrutura existente e na melhoria das condições de pesquisa.

Quanto ao seu posicionamento de “dialogador”, Liszt Vieira poderia se mostrar mais aberto ao diálogo e mais receptivo à proposta da SPU/UFRJ, que representa uma ampla oportunidade de política sócio-ambiental de vanguarda e que certamente servirá como exemplo de conciliação social e preservação ambiental para o Brasil e para o mundo. Esperamos caminhar sempre na direção de uma sociedade esclarecida e igualitária. Liszt Vieira deveria reconhecer esta oportunidade histórica, baixar suas armas e realmente se abrir a uma conversa transparente e sincera.”

Julio Feferman
Biólogo

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