Por Alexandre F. Mendes
“A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro conta, desde 1989, com um Núcleo especializado com atribuição para atuar em conflitos fundiários urbanos, tutela da moradia adequada e regularização fundiária de comunidades e favelas do município do Rio (Núcleo de Terras e Habitação). Ele foi criado a partir das próprias mobilizações dos anos 1980, que colocou a agenda da democracia urbana, do direito à cidade e da moradia em primeiro plano, após um longo ciclo de lutas contra o autoritarismo da ditadura e suas remoções forçadas.
A partir de 2007, com o apoio dos movimentos sociais e do trabalho de diversas pessoas, o Núcleo ampliou sua equipe de dois para cinco defensores(as); de cinco para vinte e cinco estagiários(as), atuando na defesa de cerca de duzentas comunidades do Rio de Janeiro. É essa estrutura que, por circunstâncias políticas e históricas, acaba inserida em uma conjuntura na qual o poder público passa a promover, a partir de 2009, a remoção de milhares de moradores(as) de suas casas (19 mil famílias, segundo dados da própria prefeitura), ou seja: uma das maiores ondas remocionistas da história do Rio de Janeiro, que se prolonga até os dias atuais.
A resistência, contudo, é viva e permanente. Um dos maiores aprendizados de quem atua nesse campo é entender como os moradores ameaçados se articulam para evitar os despejos, utilizando e inventando, de forma inteligente e sensível, uma série de meios e recursos sociais, culturais, midiáticos, técnicos e jurídicos. Sem essa luta, que é diária, teríamos cifras ainda maiores de violações e despejos. De acordo com o jurista e historiador Rafael Gonçalves, o primeiro registro desse tipo de resistência é de 1916, quando os moradores do Morro de Santo Antônio enfrentaram a Diretoria de Saúde Pública, que tentou, sem sucesso, removê-los[ii].
Praticamente um século depois, famílias que residem na Vila Autódromo se engajam em um dos momentos mais decisivos da luta contra a tentativa de remoção forçada, iniciada em 1993. Naquele ano, a Prefeitura alegou “dano estético e ambiental” (sic) para tentar retirá-los da Barra da Tijuca, bairro que despontava como centro de novos empreendimentos imobiliários. A Vila Autódromo resiste com eficácia e, já contando com a assistência jurídica do Núcleo de Terras, não só se defende no processo judicial, como consegue a regularização fundiária de seus lotes por concessão de uso, no governo de Leonel Brizola.
Depois de algumas tentativas fracassadas de remoção (no PAN, por exemplo), todas as fichas do poder público e imobiliário são apostadas no processo de preparação da cidade para os Jogos Olímpicos de 2016. A partir de 2009, com a derrota jurídica do argumento ambiental, presenciou-se várias tentativas e argumentos para a retirada da comunidade: construção da vila de mídia, do centro de treinamento de atletas, de um perímetro de segurança para as instalações dos Jogos, da duplicação de avenida, do parque olímpico e, agora, de um nebuloso projeto com várias intervenções distintas[iii].
Em 2010, diante da insistência do poder público (uma verdadeira perseguição política), o Núcleo elabora uma notificação para o Comitê Olímpico Internacional (COI), apontando violação, pelas autoridades brasileiras, da legislação internacional e dos princípios éticos adotados expressamente pelo Comitê. A entidade responde com o envio de dois ofícios questionando o prefeito e o governador do Rio sobre as denúncias. No âmbito formal, o governador se pronuncia afirmando que a notificação traduzia a opinião de poucos defensores públicos, e não de toda a instituição.
Mas na esfera, digamos, “informal”, chega ao Núcleo, através da Chefia Institucional da época, a informação de que o governo estava enfurecido com o procedimento adotado, e que “alguém deveria dar um jeito” naquele órgão de atuação. Relatos de membros da campanha eleitoral de 2011, para a eleição de um novo defensor geral, informam que o tema foi tratado nas reuniões de apresentação dos candidatos para o governador. O clima era pesado, algumas comunidades estavam sendo removidas no mesmo momento (Restinga, Vila Harmonia, Vila Recreio), mas não houve qualquer intervenção na autonomia do Núcleo, até o último dia do ano de 2010.
No dia da posse do novo defensor público geral, Nilson Bruno, os(as) defensores(as) em atuação no Núcleo são convidados(as) para comparecerem ao gabinete da Chefia. Ali souberam, na própria solenidade, que o órgão especializado iria contar com apenas dois defensores, e poucos estagiários, sendo os outros defensores lotados em outras comarcas. Um incisivo protesto foi realizado, destacando a quantidade de comunidades atendidas, a importância daquele contexto e o números de parcerias realizadas pelo órgão público. O atual Chefe recua mas cobra uma mudança de postura: uma “atuação sem pirotecnias” e com avisos prévios antes de procedimentos com repercussão, citando expressamente, e várias vezes, o caso da Vila Autódromo.
Contudo, nos meses que seguiram, a falta de apoio ao trabalho realizado era evidente. O desgaste era cada vez maior. O defensor geral, em uma atitude no mínimo infeliz, convida o prefeito para um evento intitulado “Defensoria Pública e Prefeitura: juntos pela Copa e Olimpíadas”. O encontro foi agendado para o mesmo dia da remoção integral da Vila Harmonia, comunidade atendida pelo Núcleo, e que foi devastada por violações de direitos humanos que resultaram numa batalha jurídica nacional e internacional.
A resposta dos movimentos sociais foi realizar uma manifestação na porta da defensoria – o enterro simbólico de Nilson Bruno – acelerando a crise que culminou na exoneração da Coordenadora do órgão. Poucos dias depois, a mesma defensora pública, apesar de ter sempre contado com o apoio das comunidades assistidas, foi afastada em definitivo, justamente no dia em que o Núcleo recebeu a Medalha Tiradentes, em uma conturbada sessão. Sem condições de trabalho e com a necessidade de tornar pública a intolerável situação, optou-se pela disposição dos cargos e a elaboração de uma carta pública com a exposição dos fatos[iv]. A resposta da Chefia foi a demissão de todos os estagiários, secretários administrativos e a instauração de dois procedimentos na Corregedoria contra os(as) defensores(as)
Passados três anos da intervenção, o Núcleo – reestruturado com três defensoras titulares (concurso interno) e três coordenadores de confiança da Chefia – se encontra, infelizmente, em uma situação parecida. Atuando ainda para a Vila Autódromo, mas também em casos emblemáticos como Providência e Indiana (Tijuca), o órgão obteve decisões judiciais importantes, obrigando a prefeitura a apresentar projetos urbanísticos, realizar audiências públicas e suspendendo demolições de casas negociadas, cujos escombros e entulhos geram um efeito devastador nos moradores que permanecem e resistem nas áreas afetadas pela remoção.
Ao invés de celebrar as vitórias jurídicas, ou utilizá-las para vantajosos e bem ponderados acordos judiciais, sempre com a aceitação dos moradores, o Coordenador e o Chefe Institucional parecem cada vez mais afoitos na realização de acordos que não são discutidos adequadamente com os interessados e cuja elaboração tem como protagonista, justamente, o poder público municipal, representado por sua Procuradoria Geral. Conscientes da operação em andamento, moradores da Vila Autódromo, Providência e Indiana têm procurado apoio em várias instâncias de organização comunitária e institucional.
O caso da Vila Autódromo, por exemplo, é gravíssimo. A comunidade acaba de receber o prêmio internacional “Urban Age”, do Deutsche Bank, por seu projeto alternativo de urbanização, qualificado como mais viável, adequado e sustentável em comparação com a proposta remocionista da prefeitura. Ele foi elaborado em parceria com técnicos da UFRJ e a UFF, com participação direta dos moradores, tendo sido subscrito por dezenas de entidades e órgão classistas especializados, entre eles o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).
Pergunta-se: o Chefe da Defensoria Pública apoiou o projeto? Não, pelo contrário. Há poucos meses, o defensor geral, pessoalmente, comparece a evento do poder público, tecendo uma série de elogios ao projeto de remoção e dando a situação como definitiva, a despeito do quadro jurídico favorável à comunidade. Além disso, tira fotos – amplamente divulgadas – ao lado de autoridades municipais, enquanto observa, sem qualquer objeção, o projeto apresentado.
Vejamos uma de suas manifestações sobre esse dia, publicada em informativo para a classe:
“O Defensor Geral sugeriu ao Prefeito que os não afetados pela remoção, mas que possam se interessar pelo empreendimento, conversem e negociem com os moradores que têm previsão para deixar o local, numa modalidade de “troca”, voluntária e sem maiores desgastes, haja vista a área já definida para desocupação” (Informativo – Defensoria Pública – grifo nosso).
Ora, nem mesmo o prefeito considera hoje a área como “já definida para a desocupação”, preferindo confundir os moradores e apoiadores com um projeto inacessível, que retiraria metade da comunidade. Nos processos judiciais, inclusive, o próprio Município afirma não ter interesse no local. Ou seja, chegamos à situação esdrúxula de ver a instituição responsável pela defesa jurídica dos moradores se mostrando mais ávida pela remoção do que a própria prefeitura, ré em várias ações da própria Defensoria.
Esse quadro se agravou de uma forma inédita, no dia 25 de março de 2014, quando o Chefe institucional, com os coordenadores do Núcleo de Terras e de Direitos Humanos, requereram, à desembargadora-relatora do recurso de uma das ações judiciais, a suspensão de uma liminar obtida pela própria Defensoria. A decisão tinha sido proferida na última sexta-feira (dia 21 de março), obrigando o Município a fornecer a lista dos moradores da Vila Autódromo e daqueles que aceitaram voluntariamente o reassentamento, impedindo qualquer demolição até que a informação fosse prestada.
Na fundamentação da decisão, o juízo afirma:
“Não se nega o interesse público na construção do Parque Olímpico, porém, foi a própria municipalidade que afirmou prescindir da área onde está a comunidade da Vila Autódromo e, agora, inova o seu projeto para atingir esta área e sem o devido processo legal, seja a desapropriação, ou a revogação das concessões, nem mediante processo licitatório, emite licença [de demolição] ilegal” (Apelação cível: 0021769-11.2013.8.19.0000 – Desembargadora relatora: Teresa de Andrade Castro Neves)
Não é preciso ser expert em Direito para saber que a decisão coloca os moradores que lutam contra a remoção em uma situação jurídica extremamente favorável. Nem ser um especialista em saúde pública para compreender o quão prejudicial é viver cercado de entulhos de demolições de dezenas de casas. Obrigar o poder público a fornecer informações e suspender o procedimento de demolição, questionando-se, ainda, o procedimento adotado pelo poder público para forçar a remoção é uma conquista a ser celebrada pelos moradores e seus representantes jurídicos.
Mas aconteceu o contrário. Com o argumento de que moradores que aceitaram o reassentamento estavam impossibilitados de realizar a mudança para o novo local, a Chefia e seus cargos de confiança requereram a suspensão da própria decisão, jogando por terra não só a vitória jurídica dos moradores que lutam, mas também a confiança em seus representantes processuais e o conjunto da defesa jurídica empreendida por 21 anos. Além disso, partindo de uma premissa equivocada, a Defensoria estimulou a nefasta prática municipal de colocar um grupo que, por diversos motivos, aceitou sair da comunidade, contra o grupo que tenta garantir o exercício do direito à moradia no próprio local, ao invés de buscar resguardar os direitos de todos.
É, talvez, inédito assistir representantes jurídicos públicos atuando contra a própria decisão obtida em sede liminar, dispensando qualquer atividade da parte contrária. Trata-se de uma espécie de “suicídio processual”, mas que, lamentavelmente, atingiu de forma grave direito alheio. Em perfil oficial na rede social, a defensoria geral comunica a “derrubada” (sic) de sua própria liminar, nos seguintes termos:
“Defensoria Pública derruba liminar que impedia mudança de 300 famílias da Vila Autódromo para o Parque Carioca – A Defensoria Pública derrubou na noite desta terça-feira, 25, a liminar que impedia a demolição, e consequentemente, a mudança de cerca de 300 famílias da Vila Autódromo para o Parque Carioca. Por meio do Núcleo de Terras e Habitações (Nuth) e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh), a Defensoria entrou na Justiça com pedido de suspensão parcial da liminar que não deixava os moradores efetuarem a mudança” (Perfil DPGE).
A posição da Chefia é equivocada, também, pelos seguintes motivos: a) em nenhum momento a decisão, ora suspensa, impede a mudança dos moradores para o Condomínio Parque Carioca; b) quem determinou a proibição da mudança foi a Prefeitura, ferindo os direitos dos moradores que assinaram o contrato de reassentamento do Minha Casa Minha Vida; c) não havia qualquer necessidade de suspender a decisão judicial, já que uma simples negociação com a Prefeitura ou uma medida jurídica adequada poderia garantir a mudança dos moradores; d) o Coordenador do Núcleo atuou diretamente contra o interesse dos moradores, que historicamente são atendidos pelo órgão, e que resistem contra a remoção e os entulhos gerados; e) o conflito de interesses não foi resolvido com a atribuição de um defensor tabelar (para atender o grupo)[v], mas com a infidelidade na representação jurídica daqueles moradores; f) o presidente da associação de moradores, os seus diretores e demais moradores que resistem, não foram chamados para participar das discussões ou conhecer o requerimento.
A relação com os(as) moradores(as) da Providência segue um caminho parecido. Em Ação Civil Pública (ACP), o Núcleo obteve uma excelente liminar no Poder Judiciário, determinando que o Município adote os mecanismos democráticos previstos no Estatuto da Cidade, incluindo a realização de uma audiência pública com a população, levando-se em conta possíveis alterações no projeto original oriundas da participação popular. Enquanto tais procedimentos não forem realizados, o projeto urbanístico municipal resta suspenso, incluindo as demolições de casas de moradores removidos, por haver convincentes indícios, segundo o juízo, de violação à dignidade dos habitantes do local e do patrimônio histórico-cultural.
A Chefia Institucional e seus Coordenadores se esforçam para ver realizados os procedimentos democráticos impostos pela decisão? De forma alguma. Contrariando o direito coletivo à participação, corretamente interpretado e aplicado pelo julgador da ACP, o Coordenador do Núcleo, segundo a comissão de moradores da Providência, pressiona para a realização de um acordo rascunhado entre ele e o Procurador Geral do Município, tendo como prazo de aceitação o exíguo período de 48 horas.
Ora, com uma liminar tão sólida e favorável, a Defensoria Pública precisa se submeter ao prazo estabelecido unilateralmente pela Prefeitura para assinatura do acordo? Os moradores foram convidados a analisar as cláusulas que constam no documento? Eles concordam com a cláusula que prevê a remoção e demolição de mais de 70 casas condenadas pelo Município, a despeito de haver laudos técnicos que não identificam qualquer risco?
Essas oportunas indagações foram lançadas pelas defensoras titulares do Núcleo, em reunião com os moradores, na tentativa de construir um acordo melhor, com um tempo hábil que garanta a análise e a participação dos envolvidos ou, então, de ver cumprida a liminar. Só de ouvir tais ponderações, o Coordenador do Núcleo – segundo os presentes – teve um acesso de raiva e passou a desqualificar grosseiramente as posições de uma das defensoras públicas titular. O fato acabou por gerar uma representação administrativa das defensoras titulares contra o próprio Coordenador, tendo como testemunhas os moradores da Providência que presenciaram a deplorável cena.
Assim, ao que tudo indica, e como as redes sociais já estão denunciando, a Chefia da Defensoria Pública está atuando como verdadeira “Procuradoria do Município”, deixando de lado toda as extensas prerrogativas funcionais previstas legal e constitucionalmente para a atuação dos(as) defensores(as) públicos(as), entre elas, a autonomia, a independência funcional, a participação dos assistidos e uma atuação voltada para a promoção e garantia dos direitos humanos. Em meio às violações geradas no contexto dos grandes eventos (Copa e Olimpíadas), formou-se uma espécie de “não-defensoria”, que sorri docilmente quando está perto do poder, e se descontrola raivosamente quando está entre os pobres que resistem.
Portanto, os moradores de comunidades e favelas ameaçadas pela remoção, e todos aqueles que lutam por uma cidade mais democrática, enfrentam agora um duplo desafio: reinventar o Rio, tomado pelo urbanismo higienista do poder imobiliário e pela apropriação privada dos bens comuns, e reconstruir a Defensoria Pública, retomando o caminho virtuoso de uma instituição que sempre foi apoiada pela população e pelos movimentos sociais.
Lembremos que, para derrotar os bravos moradores do Morro do Santo Antônio, que resistiram por 40 anos, a Prefeitura do Rio foi obrigada a implodir o próprio morro, destruindo todos os resquícios da vida de seus milhares de habitantes. Será que para vencer a luta dos(as) moradores(as) da Vila Autódromo, e de outras comunidades ameaçadas, teremos que assistir a implosão da Defensoria Pública e de nossas poucas conquistas democráticas? Esperemos que não.”
Alexandre F. Mendes é professor adjunto de Direito – UERJ/PUC-Rio. Foi defensor público entre 2006-2011. Participa da Rede Universidade Nômade.
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