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Entre o “Não mais” e o “Ainda não”, por Léo Lince

Apesar da terminação numérica, o ano 14 do século 21 será um ano ímpar na política brasileira. A sequência de manifestações que abalou o país no mês de junho do ano anterior foi, sem dúvida, um evento sentinela. O espectro da gigantesca irrupção contestatória, com a consistência ameaçadora dos fantasmas, pode retornar a qualquer momento. Na condição de enigma não decifrado, haverá de rondar os acontecimentos do novo ano como um espantoso sinal de alerta.

O ano se abre sob o signo da incerteza. Não a incerteza comum e corriqueira, dessas que se apresentam no dobrar de qualquer esquina. Mas aquela incerteza típica dos períodos de rearranjo sistêmico, onde a dinâmica do equilíbrio social atravessa turbulências de um tipo singular. Em tais períodos, tudo que parece sólido pode se decompor a qualquer momento. O mal-estar difuso, que corrói a partir da base todas as estruturas, sempre propicia a emergência súbita de situações inesperadas.
Como se não bastasse tal pano de fundo, a incerteza já marcou datas e enviou convites para que o inesperado faça novas surpresas. São datas que não podem ser desmarcadas, e que, ao mesmo tempo, definem de antemão o calendário dos conflitos que podem nos recolocar mais uma vez, como aconteceu em junho, no interior do hiato tumultuário que separa o desastre da salvação.

Uma dessas datas é o cinquentenário do golpe militar de 1964. O epicentro será no fim do primeiro trimestre, mas o doloroso dever de passar em revista o sentido daquela página infeliz atravessará o ano inteiro. As mídias todas, desde o oligopólio grandalhão até a guerrilha dos “ninjas” nas redes virtuais, estarão obrigadas, por dever de ofício, a tratar do tema. Nas instituições da política, nas universidades, nos recintos fechados de igrejas e clubes, no espaço livre das ruas, enfim, em toda parte será reavivada a memória das lutas deste meio século.

A memória, como o zoom da fotografia, costuma aproximar o sentido do que revisita. Afinal, o “constructo” autoritário de 64 e o contraponto democrático que lhe ofereceu resistência, de certa forma, estão presentes ainda hoje. São espinhos cravados na ferida cicatrizada, camadas geológicas da formação política brasileira. As estruturas forjadas nas abas da ditadura estão todas, inteirinhas, presentes na atualidade. Na indústria cultural de massas, com seu suntuoso padrão global, nos anéis burocráticos que articulam as alavancas do poder público com os pontos fortes do poder privado. Mudaram de feição, mas conservam o âmago da prepotência oligárquica.

Por outro lado, a cidadania também guarda a memória da resistência. Excluída e violentada nos seus direitos, ela se viu obrigada a retroceder até os limites mais elementares do tecido societário. Esse recuo compulsório propiciou descobertas. Nele, a sociedade civil desarticulada e gelatinosa se percebeu como reverso do autoritarismo. A partir deste ponto, começa um processo no qual se resgata o sentido da autonomia e da auto-organização dos novos movimentos sociais. Um processo que, alem de decisivo para a derrota da ditadura, marcou as conjunturas seguintes e redefiniu o grau de complexidade da estrutura social brasileira. Reacesa, a memória de tal processo pode funcionar como espoleta capaz de desencadear novos abalos. Afinal, mais do que remover o entulho autoritário, o confronto de hoje é com a permanência da brutalidade opressora.

Outro evento que ameaça se desatar em turbulência é a realização no Brasil, o país do futebol, da próxima Copa do Mundo. Com epicentro marcado para o fim do segundo trimestre, ele está envolto, desde já, no debate apaixonado e pode, a depender do que rolar nos campos e fora deles, deixar marcas indeléveis no processo subsequente.
O próprio futebol já não anda bem das pernas entre nós. Os nossos craques, assim como o minério de ferro e a soja, são mercadorias que vão realizar o seu valor em outras plagas. O Bayern de Munique foi campeão mundial com gols de brasileiros. As malhas da globalização, também neste plano, destilam o seu poder corrosivo, fazendo com que a paixão nacional se transfigure em raiva. Violência nos estádios, tristeza e vergonha por um campeonato onde as maiores jogadas não se deram em campo, mas nas barras dos tribunais.

O que aconteceu por ocasião da Copa das Confederações, uma espécie de ensaio geral do que está por vir, mostrou que, para os brasileiros, esta não será uma copa normal. Nem Estocolmo, nem Santiago, nem Cidade do México, belas lembranças, desta vez a copa será aqui. A euforia que costuma acompanhar o evento esportivo puro quando a disputa se dá lá fora, no caso de agora estará mesclada e borrada pelas dimensões negociais do espetáculo.

Estádios caríssimos e superfaturados, remoções violentas para facilitar obras de duvidosa prioridade, preços proibitivo dos ingressos, legislação de exceção, chefões da Fifa ditando regras, entre outros, são ingredientes de um caldeirão que vai ferver. Quantias bestiais de dinheiro público, que falta para saúde e educação, entregues de mão-beijada aos consórcios negociais controlados pelos pontos fortes do poder privado. A máquina mercante, ensandecida, nos ameaça com um legado terrível de dívidas e ruínas. São fatos indiscutíveis, escancarados em hasta pública. No confronto entre a pátria de chuteiras e a pátria das empreiteiras, parcela considerável da cidadania já tomou partido e mandou avisos: vai protestar.

Por fim, para completar o quadro, teremos em 2014 eleições gerais no Brasil. Serão 150 milhões de eleitores diante da possibilidade de renovar, na sua totalidade, as Assembleias Legislativas e a Câmara dos Deputados, um terço do Senado Federal, a chefia do executivo de todos os Estados e, principalmente, a presidência da República. O epicentro do abalo será ao final do ano, mas o deslocamento das placas tectônicas já começou e vai atravessar o ano inteiro. Tudo indica, a julgar por alguns antecedentes, que este processo eleitoral será um ponto fora da curva em relação aos pleitos anteriores do mesmo tipo.

No vértice da gigantesca maratona estará, ditando os rumos, a disputa da principal alavanca do poder político. A eleição presidencial sempre foi, no Brasil, a que desperta maior interesse, mobilização e, eventualmente, confronto real entre projetos. Principalmente em época de rearranjo de forças entre os de cima, insatisfação generalizada, ainda que difusa, entre os de baixo. Em períodos assim, o processo eleitoral pode sofrer impactos capazes de redefinir rumos e produzir novidades, para o bem ou para o mal.

A largada da atual corrida presidencial já foi um prenúncio de mudança de eixo. Alguns candidatos foram postos ao relento com antecedência demasiada. Os desarranjos no condomínio conservador estiveram entre as causas da precipitação. Os partidos da ordem, tanto os da base de sustentação do governo quanto os da oposição favorável ao modelo dominante, se lançaram na disputa presidencial simulando grossa desavença, mas crentes que eleição se destinava a escolher qual o melhor gerente para o mesmo modelo conservador. Queimaram a primeira largada.

Por ocasião da irrupção de junho, com a aparição das multidões nas ruas, os deuses da política mudaram momentaneamente de lado. Despencou da noite para o dia a popularidade de todos os governantes. Tudo e todos, de uma hora para outra, se viram interpelados pelo tumulto, acusaram o impacto da onda contestatória e se recolheram para novas reflexões. A agenda dos temas que irão polarizar a disputa eleitoral passou a ser uma questão aberta.

O condomínio conservador aposta no atendimento focado das demandas novas e na manutenção da bitola estreita do famoso tripé da macroeconomia conservadora. A contestação difusa que explodiu nas ruas confronta o modelo e repudia o sistema político ancorado na corrupção sistêmica. A prevalência do autismo da pequena política resultará, como já indicam algumas pesquisas, num amazonas de voto nulo e branco. A segunda alternativa abre largas alamedas para a recomposição da política com a vida real da população. Não está escrito no que vai dar, mas o espectro da irrupção contestatória estará presente em qualquer das alternativas. É ele que fará de 2014 um ano impar, que se destina a fluir sob o signo da incerteza, entre o “não mais” e o “ainda não”.

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