Artigo escrito por Roberto Leher
“Com apoio ativo do governo Dilma Rousseff, em especial de seu ministro da Educação Aloísio Mercadante, e das lideranças partidárias da base do governo, foi aprovado no Senado o Plano Nacional de Educação (PLC 103/12). A data de aprovação, terça feira, 17 de dezembro de 2013, será lembrada como o dia em que o financiamento da educação pública brasileira teve a sua qualificação “público” apagada em prol das parcerias público-privadas, um anseio vivamente reivindicado pelas corporações “de novo tipo”, que operam no setor de serviços educacionais e, avidamente, pelas coalizões empresariais imbuídas de um projeto de classe difundido como de salvação da educação brasileira.
É possível sustentar que o PNE do governo Dilma expressa uma mudança estrutural na educação brasileira, consolidando um objetivo que não pode mais ser confundido com o dos proprietários tradicionais das escolas privadas ou o da Igreja católica, sujeitos importantes nos embates da LDB de 1961; antes, afirma os anseios do setor financeiro que atualmente se apropria de vastos domínios dos negócios educacionais e, como assinalado, do capital como um todo, engajado na socialização “adequada” de mais de 55 milhões de crianças e jovens, como é possível depreender da ação do Todos pela Educação (Evangelista e Leher, 2012).
A vitória de Lula da Silva (PT), embora cercada de polêmicas, provocou considerável expectativa de que, ao menos, uma agenda socialdemocrata de fortalecimento da educação pública, gratuita, laica e universal poderia ser adensada conflituosamente no Estado brasileiro. Desde o início de seu primeiro mandato, as sinalizações por meio de projetos de lei e, principalmente, das medidas práticas, apontaram para outro rumo, indicando que os interesses do setor privado-mercantil (e, mais amplamente, do capital) seguiriam guiando a educação superior. O governo Lula da Silva ousou uma ruptura com o padrão de apoio do Estado ao setor privado vigente no período Cardoso: pela primeira vez, e contrariando o Artigo 213 da Constituição, possibilitou com o Programa Universidade para Todos (PROUNI) o repasse de recursos públicos também para as instituições com fins lucrativos, já superiores a 80% do total de instituições privadas.
Objetivando ampliar o mercado educacional, estagnado em virtude da concentração de renda, o governo Lula da Silva aumentou os aportes de recursos públicos para o FIES, cuja taxa de juros foi reduzida a perto de 30% da taxa básica de juros (SELIC): a diferença seria coberta pelo Estado. A isenção tributária ao setor mercantil, possível com a criação do PROUNI, abriu caminho para o ingresso dos fundos de investimento (private equity) no setor educacional, possibilitando uma frenética onda de fusões e aquisições, grande parte pelo capital estrangeiro, promovendo inédita concentração e centralização das corporações educacionais.
Plano Nacional de Educação e hegemonia do capital
O governo de Lula da Silva elaborou o PNE (PL 8.035/2010) em conformidade com o mainstream da agenda educacional do capital, incorporando, na educação básica, as proposições do TPE, os interesses das corporações educativas (liberalização e acesso aos recursos públicos), os anseios do Sistema S (controle da educação profissional) e os grandes delineamentos das agências internacionais, notadamente no que se refere à avaliação centralizada e referenciada nas competências (OCDE/PISA).
Em virtude de limites do presente texto, a análise do PNE focaliza os aspectos políticos, abordando, preliminarmente, a sua tramitação e as forças políticas envolvidas, o financiamento e as redefinições entre o público e o privado.
O projeto original enviado pelo governo Federal (PL 8.035/2010) previa, ao fim de 10 anos, 7% do PIB para educação, sem explicitar que os recursos deveriam ser destinados à educação pública:
Meta 20: Ampliar progressivamente o investimento público em educação até atingir, no mínimo, o patamar de sete por cento do produto interno bruto do País (PL 8.035/10).
Com tal formulação, o Projeto de Lei postergaria a efetivação dos 7% do PIB, podendo manter os gastos ao longo do decênio do novo plano nos mesmos patamares atuais (entre 4,5 e 5% do PIB), mas atendia aos anseios privatistas da indiferenciação entre o público e o privado, posição que coincidia com a proposta do TPE.
Com efeito, objetivando uma educação funcional ao capital, o próprio intelectual coletivo das frações burguesas locais dominantes (TPE) indicara uma elevação do percentual do PIB aplicado na educação, recomendando a ampliação dos atuais 4,8% para 7% do PIB em dez anos (percentual que fora aprovado no PNE de 2001, mas que foi vetado por FHC, veto mantido por Lula da Silva), mas condicionando o aumento de verbas à adoção das medidas gerenciais e pedagógicas afins à agenda do TPE.
É fato que desde o início da tramitação do PL 8.035/2010 existiram pressões pelo aumento para 10% do PIB. Esta reivindicação foi apresentada e fundamentada pelo Plano Nacional de Educação: Proposta da Sociedade Brasileira elaborada no II CONED (1997).
Iniciativas como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, um arco formalmente pluriclassista, mas com uma agenda que, a despeito da atuação meritória na defesa do Custo Aluno Qualidade e do financiamento para as instituições públicas, não difere essencialmente da de seus patrocinadores, como a Fundação Ford, Instituto C&A, Abrinq, Open Society Foundations (criada por George Soros para criar melhores condições de transição dos antigos países comunistas para o livre mercado e a sociedade aberta defendida por Popper (1)) e que, na prática, opera como um lobby no Congresso, sem participação efetiva dos trabalhadores da educação e da classe trabalhadora em geral; as mobilizações da esquerda educacional (ANDES-SN, Esquerda da UNE, ANEL, ABEPSS), em especial pelo Plebiscito Nacional: 10% para Educação Pública, Já!, bem como iniciativas de caráter acadêmico (ANPED, CEDES), não foram capazes de criar uma polarização – que se espraiasse por toda vida política nacional – que fortalecesse a consigna 10% do PIB para a educação exclusivamente pública.
A despeito da fragilidade da mobilização que não alcançou a criação de uma vontade nacional-popular, a pressão se fez sentir na Câmara dos Deputados. Com efeito, os deputados, operando a pequena política, promoveram mudanças na versão original (o número de emendas ultrapassou 2,5 mil), sem, contudo, alterar o que é axial no PNE. Cinicamente, o PSDB, partido que liderou a elaboração do PNE anterior (2001), destroçando tudo o que poderia fortalecer o público, agora se somou à magra representação parlamentar em defesa da educação pública, situação que, com outras variáveis, possibilitou a aprovação, na Câmara, em junho de 2012, de uma versão com os 10% do PIB para a educação pública, com a indicação de metas de expansão da rede pública de educação tecnológica e superior, bem como a melhor definição da União na garantia do Custo Aluno Qualidade (CAQ).
Uma vez enviado ao Senado, em meados de 2012, o projeto passou por três Comissões: Assuntos Econômicos (CAE), Constituição e Justiça (CCJ) e Educação (CE). Já na CAE, o projeto da Câmara sofreu mudanças regressivas, como a explicitação de que ampliação de vagas deveria se dar por meio de parcerias público-privadas (PROUNI, FIES etc.) e, na CCJ, em setembro de 2013, o relator, Senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), empreendeu, de modo mais sistemático, as mudanças desejadas pelo governo Dilma, em particular, indeterminando o uso das verbas públicas para a educação que, em sua versão, não continha o adjetivo pública, abrindo caminho para a indiferenciação público-privado, retirando qualquer explicitação sobre como os entes federados contribuirão para que os 10% sejam possíveis, afastando a União da responsabilidade pela complementação do custeio do CAQ. Os exemplos a seguir ajudam a melhor compreender o sentido das mudanças desejadas pelo governo Dilma:
No texto da Câmara, a Meta 11 assim ficou redigida:
Meta 11: Triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos cinquenta por cento da expansão no segmento público.
Na CAE, e no relatório Vital do Rego (CCJ), a meta foi assim reescrita:
Meta 11: triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos cinquenta por cento de vagas gratuitas na expansão (2).
O segmento público é substituído pelas vagas gratuitas, ofertadas pelo PRONATEC estruturado a partir da base do Sistema S, e com parcerias com as organizações privado-mercantis do setor. A mesma orientação pode ser vista na expansão da educação superior. O público, aqui, igualmente cede lugar ao privado.
Texto aprovado na Câmara: Meta 12: Elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para cinquenta por cento e a taxa líquida para trinta e três por cento da população de dezoito a vinte e quatro anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, quarenta por cento das novas matrículas, no segmento público.
O texto da CCJ do Senado assim reescreveu a Meta 12:
Meta 12: elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para cinquenta por cento e a taxa líquida para trinta e três por cento da população de 18 (dezoito) a 24 (vinte e quatro) anos, assegurada a qualidade da oferta e gratuidade para, pelo menos, quarenta por cento das novas matrículas.
Mas a medida de maior alcance para o futuro da educação pública, e que poderá, a médio prazo, ressignificar a educação pública propriamente dita, foi, como assinalado, a supressão do adjetivo “público” no texto do PNE aprovado pela CCJ do Senado, patrocinada pelo governo Federal.
A versão aprovada pela Câmara foi assim redigida:
Meta 20: Ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de sete por cento do Produto Interno Bruto (PIB) do país no quinto ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a dez por cento do PIB ao final do decênio.
O texto do Senador Vital do Rego na CCJ, estabelece:
Meta 20: ampliar o investimento público em educação de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto – PIB do País no quinto ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio, observado o disposto no § 5º do art. 5º desta Lei.
O que motiva o governo Federal patrocinar tal alteração (que, neste aspecto, restabelece o texto original do PL 8.035/10) é que, com a redação da CCJ (e aprovada pelo Senado), os gastos públicos podem ser indistintamente aplicados na educação pública e educação privada. Todas as principais medidas educacionais dos governos Lula da Silva e Dilma funcionam com parcerias: PROUNI, FIES, PRONATEC, Ciência Sem Fronteiras, Lei de Inovação Tecnológica, Creches etc. Com tal redação, um novo capítulo da educação brasileira será escrito e nele a concepção de público estará corroída pelas parcerias público-privadas.
No apagar das luzes de 2013, a bancada governista, majoritária, restabeleceu, por meio da sistematização do líder do governo, Eduardo Braga (PMDB-AM), os principais pilares do texto da CCJ, mantendo, novamente, a destinação escalonada dos 10% (que na prática pode resultar em um investimento médio no decênio inferior a 8% do PIB) indistintamente para a educação pública e para a educação privada, bem como com os demais retrocessos do texto da CAE/CCJ e da versão original do PL 8.035/10. Em defesa do relatório do Senador Vital do Rego (PMDB-PB) aprovado na CCJ, o Senador Eduardo Braga (PMDB-AM (3)) sintetizou o rocambolesco argumento governamental em prol da supressão do “público” na definição da destinação dos 10% do PIB para a educação: não importa se as vagas são de instituições públicas ou privado-mercantis, vagas gratuitas, ainda que em corporações controladas por bancos e fundos de investimento multinacionais, compradas com verbas públicas, são públicas! Segue o senador: “e todos sabemos que o setor público não poderá atender as demandas futuras por educação.
O exótico argumento foi esgrimido anteriormente por Tarso Genro e praticado na gestão Fernando Haddad. Ambos, desde 2004, vêm insistindo que não cabe mais a oposição entre o público e o privado. A educação, em suas políticas, deve ser pensada como um ‘bem público’, isto é, gratuito para os pobres e, por isso, pouco importa se ofertada por empresas ou pelo Estado.
Corolário implícito: está dado que o setor privado é reconhecidamente mais eficiente no uso das verbas públicas e, por isso, é necessário fortalecer o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), o Programa Universidade para Todos (PROUNI), o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) e, mais especificamente, na educação básica, a compra de materiais pedagógicos de corporações como as do Grupo Pearson, maior grupo editorial do mundo e proprietário de meios de comunicação influentes nos setores dominantes mundiais como Financial Times e The Economist, a contratação dos “parceiros” do Todos pela Educação (4) para cuidarem dos assuntos educacionais da rede pública, por meio de iniciativas como Alfa e Beto, Roberto Marinho, Ayrton Senna, entre outras organizações empresariais.
As repercussões da aprovação do texto do PNE defendido pelo governo Dilma ultrapassarão as fronteiras nacionais. Na prática, o Brasil será um dos primeiros países do mundo a aderir ao preceito reivindicado por um seleto grupo de países (5) no âmbito do Acordo Mundial de Comércio de Serviços da Organização Mundial do Comércio de que não cabe mais a distinção entre o público e o privado. Com o apagamento da diferença entre o público e o privado, as corporações poderão ter livre acesso aos recursos públicos, pois operam um negócio que pode ser inserido no rol dos “bens públicos”. Assim, a tendência atual de deslocamento de capital de bancos, fundos de investimentos, fundos de pensão, para atuar no promissor setor dos negócios educacionais, poderá ser muito intensificada, pois o acesso aos recursos públicos, já muito significativo na educação superior com o FIES e o PROUNI, agora poderá ser muito maior, pois o grosso dos recursos, até então vinculados à educação básica pública, agora será disponibilizado também para o setor privado-mercantil.
Perspectivas para 2014
Caso o PNE vá a voto em 2014, apesar do ano eleitoral, sem mobilização massiva, nos moldes das Jornadas de Junho de 2013, a hipótese de que a Câmara irá mudar de posição, aprovando o texto do Senado, pode ser confirmada. É preciso considerar o empenho do governo Dilma e, ainda, a larga base governista e seu histórico vínculo com a educação privada – seja empresarial, seja confessional. O mesmo aconteceu na LDB em 1996: o projeto da Câmara era mais favorável à educação pública (pois os deputados em geral sentem mais a pressão dos movimentos sociais, como o FNDEP), o do Senado, mais sensível às pressões do capital e do executivo federal, era um hostil à educação pública. Na votação final, igualmente perto das festas natalinas, prevaleceu amplamente o projeto do Senado.
Como assinalado ao longo do texto, a questão educacional mudou de escala. A defesa da educação pública não pode mais ser realizada apenas por professores, estudantes e técnicos e administrativos organizados em seus sindicatos ou nas entidades acadêmicas. A avaliação de Florestan Fernandes sobre as lutas educacionais realizada nos anos 1980 é mais atual do que nunca: é preciso um novo ponto de partida para as lutas em prol da educação pública. O novo ponto de partida decorre do fato de que a causa da educação pública não será mais compartilhada por trabalhadores aliados aos setores burgueses ditos progressistas ou modernos. Já na LDB de 1961, Florestan Fernandes constatou que não havia frações burguesas relevantes engajadas na defesa da educação pública, pois a burguesia, como classe, estava associada ao capitalismo monopolista. Nos tempos atuais, essa situação somente se agravou: não há resquícios de frações burguesas envolvidas na construção de um sistema público de cariz republicano.
As condições objetivas para um novo ponto de partida estão sendo forjadas nas lutas que ganharam vida nas greves das Federais de 2012, nos embates do MST em prol da Pedagogia do Movimento, nas greves da educação básica que transtornam o país em 2011, 2012 e nas ásperas jornadas das greves no Rio de Janeiro em 2013 e, mais amplamente, nas multidinárias manifestações de junho de 2013.
Somente com trabalho político deliberado tais condições podem ser realizadas. Não bastam as lutas esparsas. É preciso organização, projeto educacional autônomo frente aos da agenda dominante, formação política consistente e atuação no espaço público. Visitas de convencimento aos parlamentares patenteiam, como alertou Florestan Fernandes nas lutas pela LDB, a estratégia dos fracos. Frente ao que pode ser uma derrota de profundas consequências para a juventude explorada e expropriada, e ao próprio futuro da educação pública, os atos políticos dos movimentos em prol da educação pública podem ser magnificados a ponto de imporem um outro porvir para a educação brasileira. As mobilizações nas ruas, praças, escolas, universidades podem alterar os rumos desejados pelo capital. Essa é a melhor aposta para 2014!
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