“Que diabo disso é aquilo?”
Em meados do ano 13 do século 21, a sociedade brasileira foi abalada por um surto inusitado de acontecimentos cujo sentido político mais profundo ainda carece de decifração. Com a repentina rapidez dos relâmpagos, o espaço livre das ruas foi ocupado por gigantescas manifestações de massas. Algumas delas, nas metrópoles maiores, de um volume sem precedentes em nossa história recente tão marcada por grandes manifestações. A enorme onda de inesperadas mobilizações alterou a vida das cidades nos quatro cantos do país. Nas capitais de todas as regiões, nas cidades médias e até nos grotões, território que jamais se defrontara com tal fenômeno, o protesto de rua teve o sabor da novidade inaugural. Um espanto generalizado.
Não foi, por suposto, uma sequência de raios em céu azul. Passada a fugacidade dos relâmpagos, trovejam leituras e interpretações sobre as origens do acontecido. Todas elas dotadas de alguma racionalidade. Havia, entre os “de cima”, arremedos de grossa desavença. A antecipação da disputa presidencial e os desacertos na governabilidade conservadora, provas evidentes de cansaço dos materiais, eram prenúncios do esgotamento do pacto de exclusão que nos governa. Entre os “de baixo”, muita luta localizada, fragmentos do descontentamento difuso em busca de expressão. Incremento de greves; explosão de ira entre os operários brutalizados nos canteiros do PAC; ativismo crescente, nas redes virtuais e nas ruas, de movimentos específicos contra a criminalização da pobreza, a brutalidade das polícias, contra a homofobia, em defesa da ética na política. Enfim, uma lista interminável de pequenos motores de arranque, na tentativa permanente de acionar o motor grande que muda a política.
O desarranjo momentâneo entre os “de cima” e o acúmulo de lutas parciais entre os “de baixo” são elementos de um processo de alteração da correlação de forças no interior de uma determinada conjuntura política. Guardam alguma relação, mas não explicam o volume, a abrangência e a profundidade dos acontecimentos de junho. Tanto é assim, que todos, sem exceção, foram tomados de surpresa, inclusive os que convocaram as manifestações. Nunca “vinte centavos” custaram tão caro aos mantenedores da ordem dominante. A presença súbita de multidões nas ruas, sem lideranças visíveis ou aparatos organizativos, é um fenômeno social absolutamente incomum. Fora da ordem natural das coisas, ele transborda da racionalidade política convencional e se desenrola diante de nós como um enigma a ser decifrado.
O arreganho habitual do aparato repressivo, o ensaio inicial de manipulação por parte da mídia oligopolizada, as declarações desastradas de alguns governantes foram, de maneira súbita, substituídos pela cautela prudencial. Tirante um ou outro desavisado, todos perceberam, em tempo real e nos diferentes segmentos do mundo político, que estavam diante de acontecimentos extraordinários. Espantados diante do inusitado, repetem o jagunço Riobaldo no meio do redemoinho (o “demo na rua”), desarvorado até na indagação: “que diabo disso é aquilo?”
A irrupção contestatória
Henri Lefebvre, um marxista atento às réplicas da história, ao analisar ainda no calor das refregas a rebelião juvenil de maio de 68 na França, sacou conclusões que, talvez, possam nos ajudar na decifração do enigma atual. Estavam presentes na crise de então – as “barricadas do desejo” em Paris e a greve geral que paralisou a sociedade francesa por semanas – todos os ingredientes que no protocolo da esquerda definem uma típica “situação revolucionária”. Mas, segundo Lefebvre, não haveria revolução. Sequer se produziria, como de fato não se produziu, uma momentânea “dualidade de poder”. Por conta de características elencadas em tempo real, a gigantesca onda contestatória que não desemboca em revolução ou contrarrevolução foi chamada por Lefebvre de irrupção.
A irrupção contestatória seria um tipo de movimento no qual se revela a emergência de novas contradições no solo cristalizado da política. Contradições nascidas por acréscimo, superpostas às antigas que foram atenuadas, dissimuladas, “reduzidas”, sem que nunca tenham sido resolvidas, no interior dos jogos do poder. Quando a oposição política, integrada no chamado “aparato total”, deixa de expressar a dinâmica dos conflitos que ficam contidos na base da sociedade; quando os chamados “corpos intermediários” se mostram momentaneamente absorvidos pela rotina da repetição do “mesmo”, entre a política institucional e a chamada sociedade civil abre-se um imenso vazio.
A onda contestatória brota em tais ocasiões para preencher tal vazio. Ela carrega a suprema pretensão de substituir, recompor, refazer a partir do zero as mediações sociais e políticas por intermédio das quais as demandas deveriam se elevar ao nível global. Ao constatar a ineficácia dos partidos e dos “corpos intermediários” cooptados pela lógica do poder dominante, a contestação se volta contra o institucional em geral. Questiona a política, mas não é despolitizada. Expressa e aspira outro tipo de política. Ao contrário da política regular-profissional, não trabalha na perspectiva de “acumulação de forças” no interior de uma determinada racionalidade política. O sentido imediato da onda contestatória é o da recusa à integração. Nasce das profundezas, abaixo das raízes da vida social organizada, de costas para o Estado e longe de suas instituições. Para usar uma expressão feliz de Lefebvre, são movimentos localizados “abaixo da base”.
A juventude, entendida menos como faixa etária e mais como um tipo determinado de relação com o mundo, é por excelência o agente da irrupção contestatória. Além do jovem, que ainda não foi “reduzido” a um papel social no interior do sistema, existe a multidão dos recusados pelo modelo “unidirecional”. Os que erram nas ruas, os fulminados, os subempregados, os discriminados, os criminalizados, os sem-teto, sem-terra, a enorme multidão dos “sem alguma coisa essencial” operam na mesma clava. Sem espaço e ou canais regulares de expressão, o descontentamento explode no aparentemente espontâneo, inimigo mortal de todos os poderes e instituições, pois remete sempre para o imponderável.
A irrupção contestatória é fenômeno urbano por excelência. Seu impulso é habitado por aspirações grandiosas de reconstruir a sociedade através de um tipo de exercício democrático radical, constituinte e instituinte, onde todos os conflitos e interesses estariam, mais do que representados, presentes em ato, nas ruas e praças, ou seja, nos lugares ainda não totalmente controlados pelas amarras do sistema dominante. São momentos fugazes, onde se vive a ilusão do exercício pleno da recomposição do corpo da política. São movimentos de larga envergadura e que, quase sempre, remetem para o ciclo longo e para o prazo largo. No conjuntural imediato, tais movimentos se destinam a produzir um tipo original de interferência no processo concreto da luta política.
Ao expressar de maneira fragmentária o “mal estar geral”, uma miríade não hierarquizada de postulações, a irrupção revela e trata dos conflitos que se acumularam sob a crosta cristalizada da política como ganga bruta ou fratura exposta. Um grande mostruário da crise, que não estabelece variáveis ordenadoras ou vetores de lutas. Por conta de sua própria natureza, são movimentos destituídos de positividade programática. Em tal característica reside, ao mesmo tempo, a grandeza expressiva e pouca eficácia prática, do ponto de vista imediato, das chamadas irrupções. São movimentos políticos importantíssimos, que interpelam de maneira desnorteante o mundo da política convencional. Mas, apesar da recusa total aos poderes dominantes, nem sempre resultam em rupturas, nem mesmo em “dualidade de poder” ou interferência imediata na correlação entre as forças da política.
Henri Lefebvre, ao refletir sobre os acontecimentos do ano 68 do século 20, estabeleceu pontos de contato e afinidades com explosão semelhante acontecida no ano 48 do século 19. Também chamada de “primavera dos povos”, a gigantesca onda de protestos do “quarante-huitard”, para a qual Marx e Engels escreveram o famoso Manifesto, tampouco resultou em revolução vitoriosa. O Papa, o Tzar, os monarcas do direito divino tremeram nas bases, mas se sustentaram. No entanto, nos dois casos, nada seguiu como antes no processo político subsequente. A irrupção contestatória costuma semear novidades (novas lideranças, nova pauta de debates, novos sujeitos, nova morfologia na estrutura dos movimentos) que se destinam a produzir, como bombas de efeito retardado, alterações profundas na cultura política. Nem sempre na conjuntura imediata, mas no entranhado das estruturas. Para fechar o tópico mais uma vez com Guimarães Rosa, não são mudanças “no bobo do corpo, mas no interno das coragens”.
Fim de ciclo
Como no caso do maio de 68, a espoleta sismográfica que desencadeou no Brasil o pandemônio de junho foi, também, a juventude. Na composição etária das primeiras manifestações; no cerne do tsunami que trouxe para as ruas o sanatório do mal estar geral; na guerrilha diária que se seguiu ao refluxo da grande onda; nos coletivos articulados (“Passe Livre”, “Mídia Ninja”, “Black Bloc”) que se tornaram conhecidos do grande público, sem qualquer sombra de dúvida, foi através da feição juvenil que o Brasil real mostrou a cara do seu descontentamento profundo.
Também aqui, o solo da política convencional estava cristalizado. O pacto de exclusão que nos governa ostentava a aparência de um inabalável enrijecimento. Os partidos da ordem, da base de sustentação do governo ou da oposição favorável ao modelo dominante, se preparavam para uma disputa presidencial onde imaginavam definir qual o melhor oficiante para a reprodução do mesmo rito conservador. Movimentos sociais na fragilidade do fragmentado; corpos intermediários integrados no “aparato total”; a massa do povo na “satisfação conformada”; popularidade alta de todos os governos. Até partidos novos, para decepção de alguns de seus simpatizantes, alardeavam o padrão Kassab de conveniência: nem oposição, nem situação, nem esquerda, nem direita. Apenas diferentes na gestão daquilo que, até então, parecia impossível de mudar.
De repente, o que parecia solidamente estabelecido deixou de ser natural. Como nos dribles do genial Garrincha, a imobilidade absoluta cedeu lugar ao movimento súbito e desnorteante. E bastou uma breve aparição, o “demo na rua”, para que tudo se redimensionasse diante da força potencial do verdadeiro soberano da política. Na turbulência do pandemônio, despencou a popularidade de todos os governos. Tudo e todos – partidos políticos, centrais sindicais, o conjunto das instituições da sereníssima república, as vitrines reluzentes do poder econômico, o oligopólio midiático e seu sofisticado aparelho de controle ideológico – de uma hora para outra se viram interpelados pelo tumulto multitudinário. E todos, sem uma única e escassa exceção, acusaram o impacto da onda contestatória. A ninguém foi permitido subestimar a importância do enigma que ainda se desenrola diante de nós.
Mas, como no caso analisado por Lefebvre, a irrupção não se configura como um polo ordenado de lutas, no qual se condensam vetores orientados por alternativas programáticas bem delineadas. Pelo contrário. Há de tudo na babel de vozes que toma de assalto o espaço livre das ruas. Pululam postulações desencontradas. A falência do modelo dominante e o ocaso de um ciclo político não aparecem como resultante do acúmulo ordenado de pequenas mudanças. A crise se mostra na forma da fratura exposta. A explosão contestatória abala o mundo da política, desloca o eixo em torno do qual tal mundo gira, mas o seu clarão, por si só, não ilumina caminhos de mudança. É um fenômeno que, por sua própria natureza, dispara variáveis fora de qualquer controle. Diante do agito colossal, todos se assustam: ninguém hegemoniza e, ao mesmo tempo e pela mesma razão, de imediato ninguém se sente interditado por ele. Daí o espetáculo das múltiplas leituras interessadas, dos recuos táticos, da busca rápida de “agendas positivas” que possibilitem acertar o passo com o ritmo da novidade que chegou para ficar sem ter dito, ainda, a que veio.
Embora não se saiba no que vai resultar, a expectativa geral é a de que nada mais possa ficar como era antes. Tudo acontece como se vivêssemos, sem que nada tenha se deslocado de lugar, uma nova época na qual vicejam embriões de grandes transformações. Mudou a pauta dos temas em debate, mudou a agenda da política e a qualidade estratégica da conjuntura. Ou seja, os deuses da política mudaram de lado. A agitação na superfície prenuncia deslocamento nas camadas profundas. A demanda por uma nova cultura política produziu uma aparição muito forte, todos se sentiram impactados por ela. Mas, por outro lado, a alma encantadora das ruas segue desencarnada. Depois da descarga gigantesca, ela eletriza tudo, intensifica o tempo da política e flutua como um desafio diante de todos: “decifra-me ou eu te devoro”.
Todos falam, cada vez mais, em fim de ciclo. Até o coral dos contentes, os beneficiários do modelo em crise, operam nesta clava. Cada qual cuida de localizar onde melhor lhe convier o início do ciclo cujo atestado de óbito se alardeia. Para os tucanos, é o fim da era Lula. Para os petistas do “volta Lula”, basta encerrar o curtíssimo ciclo Dilma. Para os potentados da economia, a alta carga tributária está na raiz da revolta. Para os críticos do ideário neoliberal, o ciclo que se encerra embrulha no mesmo pacote Dilma, Lula, FHC e Collor. Há quem aponte para um ciclo ainda mais largo, localizando seu início na “Nova República”, a democracia formal então conquistada se transfigurou em plutocracia e, agora, sofre o repto das ruas. Até o Papa meteu o seu cajado no imbróglio: quer a permanência dos jovens nas ruas, na busca de sintonia com o ciclo novo. Enfim, como diz a quadra do cordel: “igreja de mil anos, partidos recém-nascidos/ comunista ortodoxo, cardeal, irmão remido/ conservador enfezado, revoltoso empedernido/ no pandemônio de junho todos buscam seu sentido”.
Interregno
Antonio Gramsci, outro aprendiz atento das lições da historia, especulou ideias sobre períodos da vida política marcados por determinantes estruturais da incerteza. São períodos de crise sistêmica, nos quais a única clareza possível é a constatação inevitável de que o quadro está confuso. A tais momentos, marcados pela emergência súbita de situações inesperadas, Gramsci deu o nome de “interregnum”. Uma situação que se estabelece, na definição mais simples do conceito, “quando um sistema de poder está em colapso, mas seu sucessor ainda não se formou”.
O interregno é o tempo da falência histórica de um ciclo da política, de um modelo, de um sistema até então dominantes. Mas é também o tempo da inexistência de nexos que articulem (projeto alternativo) os diferentes polos de condensação dos conflitos e das culturas criticas ao modelo que agoniza. São ocasiões, segundo Gramsci, propícias ao aparecimento de “sintomas mórbidos, fenômenos estranhos, criaturas monstruosas”. Habitado por bifurcações inesperadas e multiplicidades de rumos possíveis, ele é, por excelência, o território do imponderável, ao mesmo tempo fascinante e aterrador. Simulacro de caos, cheio de armadilhas. Um tempo intenso, eletrizado e perigoso.
Um enorme quebra-cabeça de peças desencontradas. Crise crônica, onde a dinâmica do equilíbrio social atravessa turbulências de um tipo singular. A tensão permanente entre conservação e mudança, em tais ocasiões, fica assentada no terreno pantanoso do rearranjo ou da desorganização mais ou menos profunda das estruturas. O foco da análise de Gramsci busca desvendar processos localizados, exatamente, no intervalo que separa a falência histórica de um sistema da sua falência política efetiva. A reflexão sobre a diferença entre as duas falências é outra dimensão do conceito em pauta. O que está definitivamente falido, do ponto de vista da história, só sai de cena quando de se articula, no concreto da política, a alternativa de superação: o rearranjo de forças de uma nova hegemonia. Ou seja, a falência histórica só se consuma na falência política concreta: a emergência cabal e definitiva de outra “gramática do poder”.
Entre o crepúsculo do que já era e a aurora de novos tempos, encobertos pelo manto tenebroso da noite, vigem os riscos do interregno. O poder dominante, rarefeito de substância, não murcha ao se esvaziar. Ao contrário dos balões, ele mantém luzidas suas formas vazias. Além do dom de iludir, conserva até o limite da extrema-unção o monopólio legal do uso da força. O arreganho repressivo, replicado pela exasperação entre os artífices do novo, gera um cabo de guerra envolto pelo fascínio da violência, daí os “sintomas mórbidos” referidos por Gramsci. O tempo de duração e os tumultos desta perigosa travessia serão definidos no campo aberto da luta política. Nada estará de antemão decidido. No interior do interregno, como no coração das trevas, tudo pode acontecer, inclusive nada.
Rio agosto de 2013.
Léo Lince